A depressão

por Henrique Prata Ribeiro,    10 Fevereiro, 2022
A depressão
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Ainda que a depressão seja das doenças mais conhecidas da área da Psiquiatria, é comumente desconsiderada enquanto entidade nosológica e os seus sintomas diminuídos para uma espécie de vontade de inação por parte de quem dela sofre. Esta crónica tem de começar por referir que, para além de ser uma doença, é uma doença física. É uma doença que para além de afetar fisicamente o cérebro — através de alterações a nível dos neurotransmissores e da própria estrutura (que pode atrofiar de forma visível em determinadas zonas) — afeta o resto do corpo e das suas funções, através de processos inflamatórios que podem ocorrer e não ficar circunscritos ao cérebro, ou mesmo através de desregulação neuroendócrina/metabólica. Dessa forma, mais do que começar por referir que a depressão é uma doença, gosto de dizer que é uma doença sistémica — do corpo todo. 

No mundo, a depressão é a segunda causa mais frequente de incapacidade funcional, com uma prevalência no curso da vida que ronda os 18%. Podemos dizer que uma em cada cinco pessoas, nalgum momento da vida, vai apresentar critérios diagnósticos para a doença. Ainda assim, mesmo sabendo que afeta tantas pessoas — indiretamente, tantas famílias — continua a ser difícil consciencializar o cidadão comum dos seus sinais e sintomas e conduzir aqueles que necessitam de atenção psicológica (médica ou não) aos devidos cuidados. É necessário que a informação seja a força motriz de uma mudança positiva de que a nossa Saúde Pública necessita. Tudo isto ganha relevância numa altura em que a pandemia por COVID-19 veio aumentar os sintomas psicológicos nas populações e é expectável que haja um excedente de casos de depressão, com os números globais previstos a estar na ordem dos 50 milhões de casos, com especial incidência nas faixas etárias entre os 20 e os 44 anos. O aumento previsto de afluxo nesta área necessitará de uma articulação entre os serviços hospitalares e os Cuidados de Saúde Primários, que serão o ponto de entrada e tratamento da maioria dos doentes no Serviço Nacional de Saúde.

A depressão tem como principais sintomas o humor deprimido e aquilo que em Psiquiatria designamos por anedonia — perda de prazer ao realizar atividades que anteriormente o davam. É também frequente que estes sintomas sejam acompanhados de falta de energia e de vontade para fazer coisas, bem como de uma perceção pessimista da própria pessoa, dos outros (do Mundo) e do futuro.

Um dos vários mitos que importa esclarecer neste campo, é o da génese da doença. Muito se ouve que a depressão é uma doença recente. Uma doença que surge num mundo que já não é resiliente, no qual as pessoas já não aguentam estar sujeitas a pressão. É certo que o stress — nas suas várias formas — é um fator de risco para que se possa desencadear uma depressão, mas sempre o terá sido. Os quadros depressivos já eram caracterizados por figuras como Hipócrates ou Galeno. Sendo uma doença física, sistémica, acompanhará o ser humano desde os tempos nos quais não existia qualquer tipo de registos — provavelmente antes mesmo de existirmos enquanto espécie. 

Há vários grupos com risco aumentado de desenvolver depressão face a outros. Destes grupos importa destacar as mulheres, com um risco duas vezes superior ao dos homens após a puberdade. A faixa etária com maior risco para o aparecimento da doença compreende-se entre a adolescência e os quarenta anos, com média de aparecimento da doença a rondar os trinta e cinco. Os fatores predisponentes são variados e por isso, torna-se bastante difícil predizer que alguém vai sofrer de depressão. Sabe-se que assentam sobre três eixos principais: genética; experiências de vida (especialmente na infância); personalidade

Quanto à genética, familiares de primeiro grau de doentes com depressão apresentam um risco três vezes superior ao da população geral de desenvolver a doença. É uma doença poligénica, em que o risco resulta da associação de vários genes — cada um com um peso pequeno — e não propriamente de genes singulares específicos. Quanto às experiências na infância, abuso físico ou sexual, negligência psicológica, exposição a violência doméstica e separação precoce dos pais são fatores de risco. Por fim, no que concerne a personalidade, achados atuais sugerem que parte do risco genético existe sob a forma de herança de traços particulares — por exemplo o neuroticismo — e estilos cognitivos que levam à predisposição do desenvolvimento de doença mental perante eventos que causem stress ao indivíduo — podendo este stress ser enquadrado como fator precipitante para a doença. 

A doença não tem um trajeto natural definido e fácil de antecipar. A remissão e a cronicidade variam de indivíduo para indivíduo. A duração de um episódio depressivo compreende-se, em média, num período de entre 3 a 7 meses. A progressão para uma doença prolongada e que cause impacto funcional continuado é relevante, mesmo após um ano de tratamento com antidepressivos — 2/3 dos doentes remitem, mas 1/3 manter-se-á sintomático, considerando-se essas depressões como depressões resistentes. A variabilidade sintomatológica é também bastante importante, existindo depressões ligeiras, mas existindo também algumas depressões que apresentam sintomas psicóticos, com delírios e alucinações — frequentemente enquadrados no humor deprimido do doente. 

A depressão aumenta o risco de suicídio em cerca de 20 vezes face à população geral e está associada a uma redução importante da esperança média de vida. Entre os jovens, o suicídio é, nos últimos anos, a segunda causa mais frequente de morte. No geral da população, são as mulheres que fazem o maior número de tentativas de suicídio, mas são os homens que são vítimas de suicídio mais frequentemente

É considerado que a quase totalidade de casos de suicídio estão associados à depressão. O que acontece nestes casos é que, pela natureza da doença, a tristeza invade todos os campos da vida das pessoas, fazendo com que piore a sua imagem mental de si mesmas, do redor e do futuro, como anteriormente mencionado. Com esta perceção, vêm pensamentos de peso e prejuízo sobre aqueles de quem se gosta, com um sentimento de que estariam melhor sem a presença da pessoa doente. Esta desesperança leva a que as pessoas executem um plano e o possam levar a cabo, sendo que há, normalmente, ambivalência quanto a avançar ou não. Essa ambivalência está presente até ao momento final e é parte do motivo pela qual devemos inquirir alguém acerca de ideias de morte e de um plano para as levar avante — não aumenta o risco de que ocorra um suicídio, pelo contrário, pode ser um primeiro passo para demover a pessoa e conduzi-la a uma instituição de saúde. Qualquer ideação suicida marcada, com um plano estruturado, concreto, deve fazer com que a pessoa seja conduzida a uma urgência de Psiquiatria. Essas urgências existem em todo o território nacional e estão abertas 24h por dia, todos os dias do ano.

Quanto ao tratamento, há vários fatores que é relevante referir. O primeiro é de que as depressões ligeiras podem, segundo algumas guidelines, ser tratadas com recurso a psicoterapia — técnicas de psicoterapia com evidência comprovada e não qualquer técnica de psicoterapia — e a exercício físico. Ainda assim, na maioria dos casos, quando as pessoas chegam aos cuidados de saúde, com sintomatologia apurável e compatível com o diagnóstico, o tratamento já deverá, segundo as recomendações, incluir antidepressivos. Em relação aos antidepressivos é importante esclarecer algumas ideias erradas: eles funcionam, sendo o seu efeito superior ao efeito do placebo nas metanálises mais relevantes; eles não causam dependência e não dão, na maior parte dos casos, sonolência — os antidepressivos sedativos são muito utilizados em casos nos quais a depressão se faz acompanhar por insónia, mas são tomados à noite, precisamente para que se tire partido desse efeito. No fundo, como já mencionei noutra crónica, são medicamentos que salvam vidas, porque ao curarem a depressão, uma das doenças da área da Psiquiatria que tem a possibilidade de se curar totalmente, salvam vidas que de outra forma se perderiam para o suicídio. O tratamento farmacológico, ainda que essencial, não diminui a importância do complemento com a psicoterapia, exercício físico e uma alimentação saudável, que devem acompanhar a maioria dos doentes ao longo do seu percurso de recuperação.

Como atrás se referiu que haveria 1/3 dos doentes a não responder ao tratamento e a ter uma depressão considerada resistente, é muito importante falar da importância da eletroconvulsivoterapia. Durante muitos anos foi a representação cénica do lado negro da Psiquiatria, mas é o tratamento mais eficaz e especialmente importante em circunstâncias específicas, como a não resposta ao tratamento farmacológico. A eletroconvulsivoterapia é hoje feita com colaboração com anestesista, com os doentes sedados e com recurso a técnicas de monitorização através de eletroencefalograma. Isto garante a segurança do procedimento, mas também a ausência de sofrimento para a pessoa a quem a técnica é administrada

Há neste momento resultados promissores de um estudo realizado com uma técnica específica de estimulação transcraniana (eletromagnética) para a depressão e há um potencial crescente das chamadas “drogas psicadélicas” como elemento terapêutico para a doença — a esta possibilidade terapêutica penso dedicar uma crónica futura.

No fundo, a depressão é uma doença que se encontra em todos os meios que frequentamos, em todos os estratos sociais, em quase todas as famílias alargadas. Não faz sentido que exista tão pouco à vontade em relação a algo que, infelizmente, faz de forma tão ampla parte da nossa sociedade. Quebrar as barreiras que anos de má informação e preconceitos infundados ergueram torna-se essencial — quanto mais se capacitar a pessoa comum para identificar sinais de alerta e sintomas, mais protegidos estaremos todos, por ser previsível que se consiga chegar de forma mais atempada ao necessário tratamento

P.S. Partilho os números recentemente deixados num post da Comunidade Cultura e Arte, para pessoas que possam necessitar deles, relembrando que os serviços de urgência do SNS não param de trabalhar e se encontram abertos e disponíveis para receber toda a gente:

SOS Voz Amiga: 213544545; 912802669; 963524660
Voz Solidária: 962171780

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