A distopia de Novembro
Novembro é um mês particularmente afável por variadíssimas razões. Para além de anteceder o mês de Dezembro, marcado por toda uma azáfama natalícia que se torna enfadonha, é um mês que tem algum interesse pelos acontecimentos que nele estão conotados. É bom ver, por exemplo, os miúdos nas aldeias que pela manhã do primeiro dia do mês andam de porta em porta, sorridentes e de saco da mão, a pedirem o chamado “Pão-por-Deus”, tradição católica portuguesa que decorre no dia de Todos-os-Santos. Temos também ainda pelo ilustre Guy Fawkes e a célebre frase “Remember, remember, the 5th of November”, um evento britânico que relembra o mentor do Gunpowder Plot, movimento comandado por católicos e que teve como objectivo o assassinato do rei James I de Inglaterra. E claro, temos o São Martinho com o aroma das castanhas assadas a perfumar as ruas e as avenidas, sempre acompanhado pelos míticos raios de sol que são vestígios de um verão anteriormente vivenciado. Novembro é sempre baptizado pela chuva, pelo frio que se faz sentir, e também pelos os posts repetitivos nas redes sociais da canção November Rain dos Guns n’ Roses, algo já fora de moda mas que volta à ribalta quando este mês começa, como se fosse novidade de última hora embora seja uma peça que esteja mais associada aos gloriosos anos 90 que já lá vão.
No entanto, desde há alguns anos para cá, Novembro tem sido associado cada vez mais a um evento que se tornou numa moda do século XXI e que consegue ter maior impacto do que qualquer um destes eventos anteriores. Poderíamos estar a falar do No Shave Novemeber, uma espécie de ritual que leva a que muitos homens só cortem a barba assim que o mês acabe, mas não. O evento em questão ocorre na última sexta-feira de Novembro e consiste numa descida acentuada dos preços nas lojas de produtos de valor considerável, provocando nos consumidores uma sensação de oportunidade única. Tal evento leva várias pessoas a agirem de um modo predominantemente irracional, indo às lojas em busca de algo como se fosse uma questão de vida ou de morte, sendo bastante semelhante a um típico condicionamento pavloviano. Estaremos certamente a falar da ilustre Black Friday que encerra um mês repleto de festividades interessantes e que acaba por terminar com uma espécie de movimento satânico onde conseguimos descer a um nível demasiado abaixo daquele que a condição humana nos confere. A Black Friday tornou-se no maior evento de Novembro, de tal modo que os restantes eventos simbólicos que ocorrem durante o mês são praticamente desprezáveis. Como tal, as contagens decrescentes dos dias que faltam podem ser consultadas em qualquer estabelecimento ou site de lojas aderentes, e que possuem produtos de alto calibre como roupas de marca, tecnologia sofisticada, e outros objectos e utensílios de requinte que conseguem chamar facilmente a atenção dos consumidores. E sim, há de facto mesmo quem fique a roer as unhas pela chegada do fim do mês.
Apesar de ser apenas e só o dia que sucede ao Dia de Acção de Graças, outra celebração interessante do mês de Novembro, em especial para os norte-americanos, a Black Friday tornou-se num evento que conseguiu atingir uma dimensão global. O termo advém dos acontecimentos ocorridos durante uma sexta-feira de Setembro de 1869, pouco tempo após a Guerra Civil nos Estados Unidos da América, onde dois investidores norte-americanos provocaram uma quebra na bolsa de Nova Iorque. Tal fenómeno fora denominado por sexta-feira negra, dada a dimensão do impacto na economia, tendo abalado financeiramente toda uma nação. Anos mais tarde o termo foi utilizado para a abertura das compras da época natalícia, no dia a seguir ao então Dia de Acção de Graças, com preços mais reduzidos do que o habitual. A moda terá pegado nos anos 90 do século passado, mais concretamente em Filadélfia, intensificando-se nos anos seguintes, tornando-se numa moda que hoje é uma pandemia global. A Black Friday tornou-se, mais do que um mero dia onde os produtos se encontram a preços relativamente reduzidos, quase que um dia sagrado que merecia ter mesmo um feriado móvel em honra do santo padroeiro do consumismo ou da ascensão da nossa senhora do consumo voraz. A Black Friday é um dos dias mais marcantes em cada ano, e muitos anseiam que chegue para poderem ter a oportunidade de comprar aquele ou aqueles objectos que mais desejam. Porém, esse suposto desejo é confundido com uma obsessão por ter, tornando-se numa situação totalmente caricata promovida pelo fanatismo que há na religião consumista.
Os vídeos que circulam na internet durante o evento da Black Friday são de enorme inspiração para realizadores de séries como The Walking Dead, e poderiam até ser relatados por uma voice-off dos documentários sobre a vida animal que ninguém iria dar pela diferença. Tudo começa com uma imensidão às portas de uma loja, empurrando-se logo desde início uns aos outros pela disputa de um lugar mais à frente. Os gritos de histeria já são audíveis durante a espera, intensificando-se quando surgem os primeiros movimentos de avanço. Antes disso já há quem faça stories para as redes sociais, só para mostrar que estará presente no espetáculo que está prestes a acontecer. As portas da loja abrem-se e começa a correria repleta de guinchos, berros, esbracejares, tudo num clima de êxtase. O compasso de andamento da multidão, que prossegue com fúria por um percurso inconsistente e aleatório, consegue ser semelhante ao do galopar de uma manada de búfalos em plena savana. Segundos depois vêm os primeiros atropelamentos e já está armada a algazarra naquele espaço fechado cujo factor de empacotamento cresce a cada segundo que passa. O sistema fica de tal modo desordenado e mergulhado no caos que não demora muito para se ver alguém à chapada, ao soco e ao pontapé por causa do último plasma que há na loja. Enquanto isso, noutra ponta, já há quem tenha partido uma amostra do novo iphone que estava em exposição e começa a discussão sobre quem partiu o quê. Até à pressa para se chegar à caixa e efectuar o pagamento, nota-se que as pessoas estão completamente vidradas com aquilo que estão a adquirir para dias depois deixarem de ligar ao que compraram ou arrependeram-se de terem comprado, sendo este um prazer instantâneo que no fundo não é nada mais que uma ilusão. Mas o sistema está montado para que assim o seja.
As distopias não se encontram presentes apenas e só nas obras de George Orwell, de Aldous Huxley e de outros tantos escritores que se atreveram a pegar nos pedaços mais sinistros do nosso mundo e a projectá-los para um futuro distante. As distopias já estão presentes na nossa realidade sendo que a distopia do consumo atinge o seu clímax na última sexta-feira de Novembro. Tal como diria o escritor norte americano Hunter S. Thompson “Aprendi desde muito cedo que a realidade consegue ser mais estranha do que a imaginação de qualquer um”, e a Black Friday é um excelente exemplo disso mesmo. Provavelmente, nenhum escritor de distopias de meados do século XX teria imaginação suficiente para relatar aquilo que acontece nas últimas sextas-feiras do mês de Novembro em pleno século XXI. Conseguimos perder a falta de noção, a pouca que tínhamos e que o consumismo já nos retirou, deixamos de saber distinguir aquilo que é útil daquilo que é fútil. Queremos comprar coisas que nos parecem necessidades óbvias a todo o custo por metade do preço, acabando por gastar os nossos ganhos em coisas completamente desnecessárias. Descemos a um nível tão baixo que fazemos parecer os nossos antepassados primatas mais remotos seres racionais, civilizados, com espírito crítico e bom-senso. Se Charles Darwin fosse vivo e tivesse a oportunidade de reescrever “A Origem das Espécies” na qual introduz a “teoria da evolução”, teria que encontrar uma outra teoria que pudesse explicar esta regressão cognitiva da nossa espécie perante o consumismo totalitário que impera nos dias de hoje.
Novembro tornou-se no mês do pico da distopia do consumo que antevê o mês onde o consumo paira no ar, e onde a estupidificação atinge proporções assustadoras quando a famosa máxima “paz, amor e saúde” associada ao Natal é toda uma fachada. Por mais que queiramos evocar e promover determinados valores o consumo consegue abafar tudo o lhe apareça à frente nos dias que correm. Não adianta disfarçar mais as coisas, as distopias hoje fazem parte da nossa realidade e esta é apenas uma do meio de milhares delas. Serão cada vez mais situações como estas no futuro e mais estranhas ainda do que nos possam parecer. As obras literárias que retratam essas mesmas distopias, e que estão muito associadas aos escritores do passado, já conseguem dar os seus sinais do nosso presente. Esses mesmo sinais parecem vir a agravarem-se com o passar dos anos. Escrever uma obra distópica nos tempos que correm torna-se num pleonasmo visto que já vivemos dentro das distopias quando deveríamos querer procurar as verdadeiras utopias seguindo em direcção a um horizonte humanístico que, neste momento, se encontra cada vez mais longe de alcançar. Novembro é assim um mês óptimo para nos refugiarmos em casa a ler uma dessas célebres obras sobre as distopias humanas, que já se tornaram espelhos da realidade que nos rodeia, enquanto esperamos que, lá fora, a tempestade da distopia do consumo se afaste para bem longe.