A (divina) comédia e a tragédia na vida de Dante Alighieri

por Lucas Brandão,    25 Junho, 2018
A (divina) comédia e a tragédia na vida de Dante Alighieri
Dante no exílio / Autor desconhecido
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Dante Alighieri é sobejamente conhecido pelo uso do italiano na sua principal obra literária, “Divina Commedia”, idioma que ainda se encontrava em construção na transição entre o século XIII e o XIV. A cidade de Florença viu-o nascer e ser exilado, embora conseguisse contornar as adversidades para singrar e se imortalizar no contexto literário mundial, fundindo o cariz épico ao teológico, inspirado nos rostos clássicos e religiosos, que também o conduziram a si a se firmar como uma referência.

O percurso de vida de Dante Alighieri

Dante é do signo Gémeos, conforme referenciado pelo próprio na sua obra, tendo nascido entre maio e junho de 1265 na cidade de Florença. O futuro autor nasceu no seio de uma família importante dessa cidade, envolvida no partido dos guelfos, que defendiam a predominância papal em relação ao Sacro Império Romano-Germânico, apoiado pelos gibelinos. O seu pai era um “guelfo branco”, mais moderado em relação aos “guelfos pretos”, o que lhe levou a não sentir represálias após a futura predominância dos gibelinos. A sua mãe, chamada Bella degli Abati (em português, a “bela dos abades”), partiu quando Dante ainda era criança, o que levou o seu pai a casar de novo e a ter dois filhos, os irmãos mais novos do florentino.

Aos doze anos, teria um casamento imposto, como era tradição e formalismo da época, com uma jovem chamada Gemma, de quem teria vários filhos. Essa precoce vida familiar não o impediria de estudar proficuamente, essencialmente de forma autodidata. A poesia efetuada nas regiões da Toscana e da Sícilia, para além dos mestres líricos da região da Provença e dos autores da Antiguidade Clássica, destacando-se a predileção por Virgílio. Por mais parecenças que tenham entre si, as diferenças entre as produções poéticas destes diferentes tempos e espaços denota-se, pela diversidade de identidades que caraterizava, na Idade Média, as atuais regiões italianas e as vizinhas. Uma das suas grandes referências seria o seu conterrâneo Brunetto Latini, também ele autor, que lhe prestaria inspiração e instrução para o seu futuro.

Nos tenros dos seus 18 anos, conheceu diretamente a sua musa, Beatrice Portinari, após a ver, inicialmente, aos 9 anos. Foi nessa paixão que se baseou o fluxo literário de Dante, uma poesia tão movida por um sentimento parecido ao sentido por Petrarca em relação à sua musa, Laura. Muitas vezes, Beatrice é a representação plena de todas as causas do autor, mesmo após esta morrer, em 1290, sem nunca ter estabelecido qualquer ligação ao florentino. Depois deste ano, Dante tentou afogar as suas mágoas num aprofundamento da sua cultura livresca da literatura latina, como em Cícero ou em Boécio, em várias escolas religiosas da região. Entre elas, estudou em algumas de ordens religiosas em conflito então, as franciscanas, mais místicas, e as dominicanas, mais associadas aos contributos legados por Tomás de Aquino.

A sua carreira militar e política seria, também, de referência, tendo lutado pela causa florentina perante os seus vizinhos e fazendo parte das guildas, associadas às corporações de ofícios que uniam os nobres que pretendessem assumir cargos políticos. Como farmacêutico, juntou-se à guilda dos boticários, que lhe deu acesso ao “Conselho dos Cem”, que governava a cidade de Florença. Esta associação levá-lo-ia a ter conflitos com a figura do Papa Bonifácio VIII, que visava ocupar este lugar. Discordantes daquilo que era a ação papal, o governo florentino enviou uma delegação a Roma, coordenada por Dante, tentando perceber aquilo que o Papa pretendia da sua cidade. Não obstante, em 1301, Florença foi devastada por um grupo de “guelfos negros”, que se apoderou do seu território, e que obrigou o exílio perpétuo do autor, sob o risco de ser morto, para além de uma multa avultada. Dante ainda tentou colaborar na reposição dos “guelfos brancos”, mas todas saíram frustradas. Isto levou ao seu desencantamento, assumindo pertencer a um partido de um só membro, que conduziu à redação da obra que o imortalizaria no contexto literário universal, “Divina Comedia”.

A contradição não consente
o arrependimento e o pecado ao mesmo tempo.
Inferno.

Viveu, assim, em Verona e em Lucca, sem deixar de deter uma visão política ativa, especialmente quando Arrigo VII do Luxemburgo invadiu Itália. Dante quis aproveitar este momento para, em cartas abertas a vários protagonistas dos conflitos que ocorriam então, incitar a ira divina em relação aos “guelfos negros”. Pouco tempo depois, uma governação mais tolerante viria a levantar os exílios, exceto o de Dante, pelas injúrias arremetidas nessas cartas. No entanto, o luxemburguês viria a derrotar essa fação governativa florentina, mas a sua morte repentina levaria o autor a afastar-se da sua cidade. Algumas das personagens que lhe dariam guarida em Verona seriam salutadas na “Divina Comedia”, com um lugar no Paraíso dantesco.

Nova oportunidade surgiria para regressar a Florença, mas exigiria a sua assunção de culpas e o pagamento de uma sanção. Dante recusou aquilo que um retorno acarretava, assim como após a queda do controlo militar da cidade. A sentença de morte fora trocada por uma pena de prisão, que obrigaria o autor a declarar que jamais entraria na cidade. A recusa levou a que a pena de morte alcançasse os seus filhos, prolongando ainda mais um doloroso exílio, que restringia as expressões da sua identidade. A esperança de voltar esfumara-se, com a sua morte a dar-se em Ravena, em 1321, três anos após passar a viver lá, por convite do príncipe da cidade. Foi aí que os seus restos mortais ficaram e permanecem até hoje, mas que não impediram que vários monumentos se erigissem em honra a este ilustre autor por toda a (agora) Itália unificada. A própria cidade de Florença lamentou as agruras que fez o escritor sentir, procurando recuperá-lo para os seus aposentos, embora sem sucesso.

A célebre e “Divina Comedia”

A obra seria estruturada em três livros, com 33 cantos líricos cada um e um introdutório, escrita no dialeto toscano, próximo daquilo que é o italiano atual. Esta é uma viagem protagonizada pelo próprio Dante Alighieri pelo Inferno, pelo Purgatório e pelo Paraíso (os três livros), com a orientação do poeta romano Virgílio, que simboliza a razão humana. O recurso às alegorias permite evidenciar a sua estrutura épica e filosófica, que se complementa com as suas inspirações greco-romanas, que remetem à própria obra Eneida, da autoria de Virgílio. Por sua vez, a orientação que recebe no Paraíso é feita pela sua amada, Beatriz, que representa a graça divina.

A sucessão da obra apresenta, de igual forma, o limbo, onde as almas não podiam ascender aos céus, mas que optaram pela virtude, incluindo aqueles que viveram antes de Cristo. É aqui que está Homero, Ovídio e Horácio, os três poetas marcantes na Antiguidade Clássica. Enquanto desce pelo Inferno, Dante encontra figuras mitológicas com as mais variadas constituições, como o cão Cerebrus ou a Medusa, assim como os hereges nos túmulos de fogo, os assassinos, os violentos contra Deus e a Natureza e os traidores, sofrendo castigos perenes e crescentes consoante a gravidade dos seus atos. De seguida, Virgílio e Dante chegam ao Purgatório, onde tantas são as almas em expiação dos seus pecados, assim com as outras que assistem a punições no abissal Inferno. Os sete círculos aí existentes simbolizam os sete pecados capitais, sendo lá que Virgílio fica, por ser pagão e, como tal, não ter acesso ao Paraíso. Ao lado de sua amada, Beatrice, avista sete céus móveis, representativos dos planetas em que é abençoado, e três fixos, em que um deles é o que está acessível pelo olhar humano, e o último deles o imaterial, povoado por uma rosa branca, onde está a Santíssima Trindade, e pelos espíritos bons.

As descrições nas três partes constituintes da obra são diferenciadas, com um ritmo mais alucinante e fervoroso vivido no Inferno, com passagens mais refreadas e líricas no Purgatório, por onde estão mais poetas, chegando ao êxtase idílico do Paraíso, em que a perfeição é quase impronunciável. São descrições que são transportadas para os próprios ideários dos cristãos populares na época medieval, como os castigos no Inferno e os destinos a serem encaminhados no Purgatório. A obra faz, também, uma proposta posicional do planeta Terra, estando ela no meio de um conjunto de círculos, à imagem de uma esfera armilar, cujo meridiano é Jerusalém, que se torna num portal para o Inferno, após a Terra Santa ser atingida. Por sua vez, o Purgatório e o Paraíso são os segmentos que representam as dinâmicas celestes e que reproduzem os cenários que Dante capitaliza na sua obra.

A fama que se adquire no mundo não passa de um sopro
de vento, que ora vem de uma parte, ora de outra,
e assume um nome diferente segundo a direcção de onde sopra.

Purgatório

A restante produção escrita de Dante

Entre várias epístolas e éclogas, nenhuma se tornou tão relevante como os diversos trabalhos líricos e temáticos de Alighieri, em que deambulou entre o latim e o dialeto florentino. Inicialmente, destaca-se “De vulgari eloquentia” (“Sobre a eloquência vernácula”), um ensaio em que aborda a relação entre o latim e os dialetos vernaculares, procurando encontrar um direcionado para o território italiano, para além de analisar as típicas canzones que lá se redigiam. Dante colocou em pé de igualdade o vernáculo, situando-o num percurso evolutivo da língua, que chegaria à constituição plena do italiano atual.

Ainda naquilo que é o seu amor platónico por Beatrice, surge “Vita Nuova”, uma obra que oscila entre a construção poética e a prosa, numa linguagem essencialmente lírica (assumida como o stillnuovo, ou o “doce estilo novo”), em que os sonetos e as baladas (poesia medieval destinada a ser cantada) estão bastante presentes. A narrativa conta o seu primeiro e segundo encontros com Beatrice, aos 9 e 18 anos de idade, ao qual está associado um sonho em que ela deglute o coração do autor em lágrimas. Este caráter alegórico representa o que custava a Dante esconder o seu sentimento, que o levava a tentar galantear as donzelas que acompanhavam a sua amada, que interpretou mal aquilo que era a conduta do florentino e o passou a ignorar. Dante também conta o sonho profético da morte de Beatrice, cuja memória passa a ser revivida mas não estancada naquele trabalho, que antecederia a “Divina Comedia”. A poesia continua a acompanhar o escritor, desta feita em “Le Rime”, uma coleção de poemas que representam a sua experiência de vida e as suas experimentações estilísticas, para além de englobar um conjunto de poemas dedicados a uma figura feminina que não Beatrice, de seu nome Petra.

Alighieri também redigiu dois tratados, sendo eles “Convivio” e “De Monarchia”. O primeiro contém um título que deriva do latim convivium, que significa banquete. Esta obra visa ser uma contextualização sobre o latim, língua preferencial na transmissão de conhecimento e na discussão científica, essencialmente na filosofia, cuja estrutura argumentativa deste trabalho é exemplificativa. Já “De Monarchia” debruça-se sobre os contornos do poder secular e religioso, procurando esclarecer e problematizar a relação da autoridade do Imperador com a do Papa. A experiência pessoal do florentino não é descartada nestes três livros, condenando o excesso de poder assumido pela Igreja Católica. Para além deste apontamento, Dante expressa uma perspetiva, na qual o Papa é o responsável pela gestão da vida eterna dos homens, mas com o Imperador a ter, a seu cargo, o caminho para a felicidade terrena dos mesmos. A separação das dimensões temporal e espiritual ilustre a humanidade de cada um dos seus representantes, dimensões de poder advindas de Deus. O homem é, desta feita, o elo entre o corrupto (corpo) e o incorrupto (alma), sendo que só o poder superior divino pode exercê-lo sobre outro órgão de poder mundano.

Entre a comédia (divina) da sua obra e a tragédia (do amor) da sua vida, Dante Alighieri é um dos marcos proeminentes da poesia em latim e na evolução do idioma italiano. O seu percurso vasto é marcado por uma experiência rica e por uma instrução autónoma, que percorre uma visão mundana e outra metafísica, articulando o desejo do idílico no sofrimento do material. A imaterialidade que constitui o legado da sua vida e obra é o caminho que liga o inferno dantesco ao paraíso de um amor cumprido e gigantesco.

A vontade, se não quer, não cede,
é como a chama ardente,
que se eleva com mais força quanto mais se tenta abafá-la.

Paraíso.

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