A doença mental e o acesso

por Henrique Prata Ribeiro,    16 Maio, 2024
A doença mental e o acesso
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O acesso aos cuidados continua a ser uma das grandes batalhas da Saúde em Portugal. Em especial, garantir acesso equitativo e universal a todos os que precisem de recorrer a eles. As condicionantes são muito variadas e podem ir desde a área de residência até à disponibilidade financeira dos utentes. Na área da Saúde Mental, durante vários anos falámos da dificuldade de acesso por culpa do “utilizador”: o estigma e a falta de informação afastavam as pessoas das soluções que se lhes ofereciafossem estas preventivas ou reactivas. Os últimos anos trouxeram um interesse crescente pela área da Saúde Mental e uma maior sensibilização da população geral tanto para possíveis factores de risco para doença, quanto para a presença de sintomas psicológicos que causem disfunção. Infelizmente, este aumento da sensibilização e um aumento de procura vieram exacerbar outras dificuldades de acesso, para as quais podemos culpar o sistema.

Comecemos pela área na qual sempre falhámos – a prevenção. Falhamos cronicamente na implementação de medidas preventivas de doença psiquiátrica. Talvez os factores com mais peso nesta vertente sejam os mais inespecíficos e difíceis de alterar: a pressão financeira e a pobreza relativa. Como é que um casal que ganha o salário mínimo vai ter tempo para se alimentar em condições, fazer exercício físico regular e dormir o tempo necessário? Viver num país mais pobre e no qual as pessoas não conseguem ter qualidade de vida apesar de trabalharem muitas horas submete as pessoas a stress psicológico. Isso traduzir-se-á em mais casos de doença psiquiátrica (e não psiquiátrica também). Mas não é apenas por sermos um país pobre que falhamos na prevenção, é mais complexo do que isso. Parece haver uma dificuldade instalada de chamar a atenção do poder político para alocar fundos que possam fazer a diferença. Fazem falta psicólogos nos Cuidados de Saúde Primários (CSP); faz falta formar professores para identificarem e sinalizarem as crianças em risco de desenvolver doença psiquiátrica; faz falta sensibilizar a população para a importância de um envelhecimento activo com exercício físico regular; faz falta levar às pessoas mais informação acerca das doenças mentais. Tudo isto depende de organização dos serviços, mas depende sobretudo dos recursos que se dá a esses serviços para que operem.  

A nível da intervenção na doença, as coisas conseguem complicar-se. Sabemos que nas doenças psiquiátricas, como em quase todas as outras, iniciar o tratamento o mais rápido possível melhora o prognóstico dos doentes. Num trajecto ideal pelos cuidados de saúde, os doentes são avaliados pelos médicos de família, que diagnosticam e tratam os casos mais ligeiros de doença, com acesso a colaboração com psicólogos – que já vimos que o sistema não tem em número suficiente. Depois dessa avaliação, em doentes mais graves ou nos quais falhem as primeiras linhas de tratamento, deverá haver um encaminhamento para um médico especialista: um psiquiatra. 

Na psiquiatria, quando se avaliam os doentes, dependendo da apresentação da patologia e da sua gravidade, haverá vários caminhos possíveis: poder-se-á iniciar tratamento; internar o doente; internar ou tratar o doente ao abrigo da Lei de Saúde Mental, caso este preencha os devidos critérios e se recuse a cumprir o tratamento; encaminhar o doente para serviços que ofereçam uma solução de internamento prolongado. A grande questão é que praticamente todos os passos aqui enumerados apresentam falhas, que fazem com que a resposta não consiga chegar de forma equitativa a todos quanto precisam dela. 

Pensemos no aspecto mais básico: não termos médicos de família para todos. Isto pode parecer um detalhe, mas acaba por ser o que sobrecarrega as urgências e subsequentemente as consultas especializadas, que passam a ter de acompanhar doentes menos graves. Isso leva a que não se consiga receber doentes graves no tempo devido, nem observar esses mesmos doentes com o intervalo temporal recomendado. O acesso ainda se complica mais a nível hospitalar, porque não tem havido camas para todos os doentes agudos que precisam de internamento de psiquiatria. Passámos a ter doentes a ficar “internados” nos serviços de urgência – nos quais há pessoas a circular, as luzes estão ligadas 24h e não se tem a privacidade de um quarto, com doentes deitados em macas lado a lado com outros. A ausência de vagas de internamento não é transversal a todas as regiões do país, mas é especialmente preocupante porque, para além de sujeitar os doentes – muitas vezes agitados – a condições que estão longe de ser as ideais, afecta a prática clínica dos médicos. Gera pressão para evitar internamentos e leva a que tenha de se tomar decisões cada vez mais no sentido de que os doentes cumpram o tratamento em casa, sem que estejam totalmente operacionais as equipas comunitárias que vêm sendo criadas, sujeitando as pessoas a um nível de risco maior. Também a contratação de médicos, quer de Medicina Geral e Familiar, quer de psiquiatras ou pedopsiquiatras esbarra na realidade das novas gerações: os médicos já não estão dispostos a trabalhar 40h no serviço público, mal pagos e a ter de manter actividade privada extraordinária para pagar as suas contas. Seria muito relevante que se alterasse as políticas de contratação e se pudesse recrutar médicos a tempo parcial.

Noutras questões de infraestrutura, podemos considerar que têm de ser melhoradas as condições para os doentes sob tutela da Justiça – quer para presos comuns, quer para doentes inimputáveis a cumprir medidas de segurança. Deveria haver mais horas de consulta especializada disponíveis e dever-se-ia avançar com a criação de Estruturas de Liberdade para Prova e de serviços de internamento em meio hospitalar para doentes inimputáveis.

Ainda noutro campo do acesso aos cuidados, podemos olhar para a dificuldade de acesso à inovação. Na área da psiquiatria, a inovação está muito ligada ao recurso a fármacos mais recentes. Depois de um período no qual houve alguns avanços – como a dispensa gratuita dos antipsicóticos injectáveis mais recentes aos doentes a sofrer de psicose – a psiquiatria voltou a cair no esquecimento. Nos últimos anos o INFARMED tem protelado a aprovação de novos fármacos na área da psiquiatria. Falo de fármacos que são usados para doenças como a depressão – que tem um enorme peso para a sociedade – ou para episódios psicóticos, que são geralmente manifestações muito graves presentes nalgumas doenças. São vários os fármacos disponíveis noutros países da Europa que não temos disponíveis em Portugal – mostra que a psiquiatria continua a não ser encarada como as outras especialidades e limita as opções de tratamento que se consegue oferecer aos doentes. Estaríamos perante estas dificuldades se estivéssemos a falar de medicamentos oncológicos? O impasse que tem havido na aprovação de novos psicofármacos está a prejudicar doentes que poderiam responder-lhes e melhorar o seu estado de saúde, diminuir os seus níveis de absentismo laboral e melhorar os seus indicadores de qualidade de vida. No passo seguinte da recuperação dos doentes, importa mencionar também a falta de acesso a empregos protegidos, que seriam essenciais para uma franja relevante destas pessoas. A falta de organização dos serviços para criar estas opções deixa os doentes numa situação social mais frágil, protelando ou até impossibilitando a sua devida reintegração na comunidade e condenando-os a não se conseguirem sentir elementos contributivos para ela.

Portugal é um dos países da Europa com maior prevalência de doença mental. A única forma de se combater o paradigma actual é investindo nesta área – não só a nível de Recursos Humanos, mas também a nível de condições físicas dos serviços e disponibilização das mais recentes técnicas e fármacos. Alterou-se o paradigma. Se antigamente podíamos dizer que os utentes não procuravam os serviços, hoje podemos dizer que, em parte, os serviços têm de melhorar para que possam ser encontrados.

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