A era moderna (reprise)

As primeiras dez páginas de “Creation Lake”, romance de Rachel Kushner, são sobre o Neandertal, ou melhor dizendo: são sobre opiniões relacionadas com o Neandertal e as suas qualidades. Dos meus primeiros dez dias do ano, cinco foram passados em casa, a convalescer, em estado quase primitivo. Entrei em 2025 arrastando gripes e viroses de dois mil e vinte e quatro, e tive de me deixar cair num espaço de cansaço, mal-estar e algum delírio febril. Nada de preocupante.
Enquanto dormia sob o efeito suave de ibuprofenos, com a garganta embalada por sabores de limão e gengibre, deixei-me sonhar com as imagens que apanhei, em várias redes sociais e na televisão, de pessoas a mergulhar no mar. Não percebo a pressa para entrar assim, desta forma tão imediata e intensa, num tempo novo. Sou mais de esperar, de explorar – para mim janeiro é um limpa-palatos, um pequeno purgatório em que se dá espaço para a transição das estações decorrer normalmente, com a pressa justa. Nunca corre bem, porque quando o ano entra, entra à bruta, mas vamos esperar para ver como é, desta vez.
Sim, acho que ainda não entrei no ano. A doença passou, mas a nostalgia não. Voltei, durante uma tarde de cama, a ouvir um disco que me dizia muito, cuja feitura acompanhei demasiado de perto, ao ponto de arriscar perder a audição para sempre. Falo do primeiro disco dos Velhos, sem-título – ou com o título simplesmente homónimo: “Os Velhos” – editado pela Amor Fúria em 2011. Quando saiu, a primeira década dos anos zero tinha passado, e com ela a minha adolescência e tempos de universitário. Em 2011 estava na Escócia, a fugir do Direito, a estudar cinema e a fazer música eletrónica com dois colegas da universidade, um inglês que estudava o “Mulholland Drive” e um zambiano que estava a fazer uma tese sobre Nietszche e o Capitão América. O disco dos Velhos tinha dez canções, todas fortes, cruas, e duras, nas palavras, nos ritmos, nas guitarras, na voz. Era tão real como o frio de Edimburgo e o calor do meu corpo e do meu desejo.
Ouvi no meu leito de doença a canção “Era Moderna” e sentia-a imediatamente a entrar em mim, como o autocarro que era, e lembrei-me de Lisboa por essa altura, no início da crise financeira, cheia de salas de música em toda a parte e uma promessa de futuro que se quebrava abruptamente: o fim do tempo dos passeios, e o início de uma vida com menos inocência. Claro que os anos passam e o amor revela-se de outra forma. O corpo forma-se com o que sobrevive e vai aprendendo a apreciar o sol de outras formas. Quanto ao disco, continua bonito e bruto, como os melhores amigos.
Os melhores amigos são pessoas e sítios, porque não é problema nenhum regressarmos onde fomos felizes. Voltei a trabalhar na Baixa, e quando entrei de novo no escritório descobri um casaco que julgava perdido. Ali estava, no bengaleiro, à vista de todos, e assim esteve durante dois anos. Casa é casa, não se pode pedir outra coisa.
Ainda assim, agora no futuro, penso no passado, porque janeiro é um processo. Ouço dois heróis de 2024, Waxahatchee e MJ Lenderman, num dueto bucólico, e ao seguir os incêndios californianos procuro a pungência das canções de Aimee Mann. De resto, vou aproveitando o sol, protegido do frio, e pensando nas piadas infinitas que David Foster Wallace inventa a cada linha do seu magnum opus (há uma que não me sai da cabeça, sobre um tipo que vive numa casa de recuperação para toxicodependentes e que usa “Eastern-European-type Hawaiian shirts”).
Sim, morreu David Lynch, o meu realizador preferido, que me ensinou a olhar com liberdade para a beleza das coisas, em toda a sua dificuldade, e graças a quem aprendi a ver o mundo, e Lisboa, como um conjunto de pequenos milagres diários, com a sua violência muito própria, e um amor imenso. A elegia já se escreveu, noutro sítio. Até sempre, mestre.
Sugestões do cronista:
Ouvi os Velhos (Os Velhos, 2011) e Aimee Mann (Bachelor No. 2 or, the Last Remains of the Dodo), e a canção Right Back to It (Waxahatchee e MJ Lenderman, 2024), e o disco muito porreiro de Cameron Winter, Heavy Metal (2024). Este último lembra-me os primeiros discos de Beirut, sem trompetas e com órgãos, e com uma pitada de Nick Cave na voz. Não tenho ido ao teatro nem ao cinema, mas vi o documentário sobre Lou Pearlman (“Dirty Pop”, Netflix, 2024), que achei engraçado por não conhecer nada da história. Livros? Kushner, Foster Wallace, e coisas jurídicas sobre instrumentos financeiros. Ano novo, vida nova, não é o que dizem?