A Escritaria na Cozinha de Quessus: a literatura engorda 

por Mário Rufino,    17 Outubro, 2018
A Escritaria na Cozinha de Quessus: a literatura engorda 

Para a 11.ª edição da Escritaria, a organização promoveu uma ementa com pratos do agrado dos autores homenageados. Se havia dúvidas de que a literatura engorda, pois ficaram desfeitas.

A literatura sempre se sentou à mesa para comer bem. Dumas escreveu “O Grande Dicionário de Culinária”, obra monumental com mais de 600 verbetes, 400 receitas e crónicas literárias sobre gastronomia. Esse dicionário foi utilizado pelo personagem Hannibal Lecter nas suas confeções mais…exóticas. Tolstoi, em “Anna Karenina”, menciona muitas vezes as ostras, o caviar e o champanhe. Em Portugal, são bem conhecidas as ameijoas à Bulhão Pato, ou as perdizes à espanhola do personagem Tomás de Alencar, em “Os Maias”.  Outros exemplos podem ser encontrados muito facilmente entre o cânone da literatura universal.  Ficção e realidade misturam-se em doses generosas. A literatura e a culinária são almas gémeas.
Miguel Sousa Tavares, Pepetela, Urbano Tavares Rodrigues, Alice Vieira e Agustina Bessa-Luís viram as suas predileções tornadas realidade na Escritaria. E nenhuma é pouco calórica.

“Creme de cogumelos tortulhos, castanhas e perdiz confitada a baixa temperatura”: Uma entrada que seria a delícia do homenageado de 2017, Miguel Sousa Tavares. O prato de peixe foi inspirado em Pepetela, homenageado deste ano. Foi servido “Bacalhau confitado em terrina de broa de milho do Vale do Sousa, com pimentos assados, grelos salteados Da Nossa Terra, grão-de-bico e azeite”. O corta-sabores, para limpar o palato, coube ao primeiro homenageado da Escritaria. Urbano Tavares Rodrigues é representado por um nostálgico “Sorvet de vinho tinto charamba com amêndoa torrada”. Já com o palato limpo, segue-se o prato seguinte. Alice Vieira, homenageada em 2016, tem o seu nome associado a “Grelos e anho assado em vinho verde num folhado, arroz malandrinho de enchidos miúdos de anho e açafrão”.

Finalmente, a sobremesa de Agustina Bessa-Luís, homenageada em 2010. Termina-se com o sabor de “Pudim de pão podre de Penafiel, presunto, mel e azeite servido com queijo Penafidelis e vinho licoroso”.
Ao longo dos sete dias de programa, a ementa, devidamente adaptada à região, foi servida em diversos restaurantes. Um desses restaurantes foi a “Cozinha de Quessus”.
O espaço ornamentou-se para receber Pepetela e a Escritaria. Mário Cláudio, homenageado em 2015, foi um dos convivas presentes.

Na localidade de São Tomé, a “Cozinha de Quessus” é um espaço tradicional iluminado por candeias, velas e candeeiros a petróleo. Os pratos são confecionados defronte do cliente, no forno ou na lareira, com a lenha como única fonte de energia. O século XXI não é convidado a entrar. Dentro da sala de jantar não há “wi-fi” nem possibilidade de telefonar. O espaço foi decorado de acordo com os materiais de origem, conferindo uma atmosfera típica de casa de lavradores do século XIX. Os ingredientes com que são confecionados os pratos provêm da quinta onde se situa a Cozinha de Quessus. Para o almoço do último dia do festival, a sugestão de Mário Cláudio:
“Arroz de frango e romãs com vinho do Porto”.
Não sendo Verão, não foi possível assistir a cantares ao desafio, grupos de cavaquinho ou ranchos folclóricos. No entanto, a simpatia da cozinheira foi mais do que suficiente para encher a sala.
Antes do arroz de frango sugerido pelo homenageado da Escritaria em 2015, foi servida broa de milho frito em azeite e alho, juntamente com chouriço, salpicão, cebola em vinho e broa cozida no forno e azeitonas. Aberto o apetite, seguiu-se o caldo comido com garfo e bebido diretamente da malga.
Numa mesa única e comprida, as histórias cruzaram-se entre os convivas, fosse sobre comida ou sobre o festival. Enquanto se escutavam, bebiam refresco de aguardente, vinho, água e refresco de café.
Além da tradicional existência destas entradas, Dona Manuela, cozinheira, faz a pedido e para um mínimo de 10 pessoas.

“Os clientes escolhem um prato e uma sobremesa”
Havendo uma lareira e um forno, não é possível servir pratos diferentes. A comida deve ser servida e consumida de imediato. A fruta da época é recolhida na própria quinta. Sem químicos, é só passar por água ou sacudir o pó.
O Halloween e dia dos namorados são alturas em que a Cozinha de Quessus é muito requisitada.
Sopa seca e leite de creme foram as sobremesas, antes de os convidados se levantarem para se servirem de café, diretamente da chicolateira [de chicória]. “Está a sopa na mesa”, haveria de dizer a criada de “O Primo Basílio”. Custou a levantar depois de tal repasto. Saindo da sala, os olhos precisaram de se habituar à diferença de luz. Respirava-se o adocicado das uvas.

O século XXI foi retomado, com o etéreo reaparecimento da internet. Mas a verdadeira rede social não estava ali. Aconteceu lá dentro, defronte de comida e da lareira, em plena comunhão de aromas, palavras e odores.
É o cheiro e o paladar que melhor atalham até às memórias. Miguel Sousa Tavares, homenageado em 2017, assim o fez com “Cebola Crua com Sal e Broa”, seu último livro. “A romã com vinho do Porto” e o arroz levaram Mário Cláudio a contar algumas histórias da sua infância e da região onde cresceu. E é à mesa que se contam as melhores histórias. 

A partir da 11.ª edição, a Escritaria é também para comer. 

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