A esquerda do “hype” não tem agenda mobilizadora

por Rui Maciel,    10 Abril, 2025
A esquerda do “hype” não tem agenda mobilizadora
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Antes de escrever este texto, escrevi um intitulado “A esquerda está uma seca”. Depois de reflexão e discussão com uma amiga próxima, cheguei à conclusão que esse texto não iria servir de nada. A esquerda está numa crise existencial e para sair dela é necessário que haja uma resposta energética e orientada para o futuro, exatamente o oposto do que se tem passado nos últimos tempos. Está lânguida, sentada no sofá, a responder somente aos desafios da direita não democrática e a não agir pro-ativamente sobre os assuntos. Mas este problema não é de agora. 

O Partido Socialista está refém de um governo que geriu o país de uma forma corrente durante três anos, sem fazer qualquer tipo de reformas estruturais profundas. O foco na descida da dívida pública deixou à AD um orçamento pronto a distribuir a tudo e todos. O Bloco de Esquerda, a lutar pela sua sobrevivência, traz a velha guarda para ganhar espaço público; o PCP acomoda o seu lugar nos livros de história e o Livre tenta firmar o seu lugar como partido de esquerda, com graves problemas de crescimento interno.

“A esquerda portuguesa e internacional precisa de agenda, da promessa de um mundo novo, e nos dias de hoje não existe criatividade para criar uma agenda mobilizadora, que capture o âmago da sociedade.”

O diagnóstico do problema é relevante para percebermos o que falta à esquerda em contraste com 2015, quando teve a sua última grande vitória (porque sim, a esquerda teve uma maioria no parlamento e governou 4 anos com estabilidade). Não conto as duas eleições do PS, em 2019 e em 2021 como vitórias da esquerda, porque foram essas, infelizmente, que nos levaram a este estado: a um esvaziamento total dos partidos de esquerda em Portugal e a uma política de centro, com o objetivo de tornar o PS o partido trincheira em Portugal, que agradaria a gregos e a troianos. Em 2015, o objetivo da Gerigonça foi claro, virar a página da austeridade do país, e criar um país novo, diferente daquele que vivemos nos anos da troika. E aqui nasce a minha solução, a esquerda portuguesa e internacional precisa de agenda, da promessa de um mundo novo, e nos dias de hoje não existe criatividade para criar uma agenda mobilizadora, que capture o âmago da sociedade.

Após as grandes conquistas civis no início do milénio, como a despenalização do aborto, o casamento por pessoas do mesmo sexo, e a possível legalização da eutanásia, a esquerda abandonou por completo o combate de classes. Numa das melhores análises que li sobre a série “Adolescence” da Netflix protagonizado pelo 93 percent club*, intitulado “Adolescence’s message is clear: we ignore class at our peril.”, o autor expõe como na série a classe do protagonista é das coisas mais essenciais para o compreender. Isto é visível numa cena em que o rapaz fala sobre o seu pai, dizendo “He works hard, long hours — you get the best money for emergency plumbing out of your hours, you know?”. Nunca falando explicitamente da classe, temos aqui um dos melhores retratos da classe trabalhadora: estão dispostos a sacrificar a sua saúde mental, o seu bem estar familiar e a sua vida, por trabalhos que paguem mais, mesmo que isso corresponda à exploração e deterioramento da sua situação.

“É necessário voltar às raízes da esquerda, com um discurso de futuro. Abandonar o plano moral em prol de medidas concretas, como a defesa da Escola Pública, do Serviço Nacional de Saúde, a criação de Infraestrutura Pública, e a construção de Habitação Pública.”

Além disso, nesta peça fala-se de uma outra perspetiva importante. As classes baixas e principalmente os homens de classe baixa estão fartos de que lhes digam o que têm de fazer. Este sentimento é retratado no diálogo entre a psicóloga posh com o jovem Jamie. Em 1931, Walter Benjamin escreveu um ensaio chamado “Esquerda Melancólica”, no qual criticava a postura da esquerda à época de demonstrar somente as desigualdades e oferecer uma solução moral para o problema em vez de partir para a ação. Walter Benjamin foca o seu ataque principalmente nos artistas da República de Weimar que se viraram para uma produção de arte que somente criticava o mundo capitalista em que viviam, numa postura altiva e pouco consequente para a vida democrática. O resultado foi tudo o que vimos que aconteceu na década de 1930 na Alemanha e, num exercício até futurista, tudo o que está a acontecer agora. O refúgio da esquerda para o campo moral atirou-a para uma trincheira, na qual está continuamente a defender-se dos ataques da direita, sem qualquer tipo de iniciativa para marcar o debate público.

Há uma necessidade clara de a esquerda se revitalizar no contexto capitalista dos dias de hoje. O caminho revolucionário não mostrou qualquer tipo de viabilidade na União Soviética e é hoje ainda mais necessário que a esquerda encontre um caminho dentro da sociedade ocidental. A Terceira via foi uma tentativa frustada que saiu pela culatra. Em vez de se melhorar as condições de vida dos mais desfavorecidos, abandonou por completo a classe trabalhadora, atirando-a para os braços da direita nacionalista. Além disso criou um efeito secundário que deveria levar qualquer um a pensar, nos Estados Unidos da América, o maior indicador de um eleitor democrata é se ele tem ou não um diploma universitário. Este facto reforça a teoria de Walter Benjamin do distanciamento das elites intelectuais da classe trabalhadora.

O caminho para a frente tem de ser feito de duas maneiras. Em primeiro lugar é necessário voltar às raízes da esquerda, com um discurso de futuro. Abandonar o plano moral em prol de medidas concretas, como a defesa da Escola Pública, do Serviço Nacional de Saúde, a criação de Infraestrutura Pública, e a construção de Habitação Pública. Uma social democracia como a que vigorou na Europa após a Segunda Mundial até à queda do muro de Berlim. Em Portugal, a esquerda fala demasiado no plano teórico destes assuntos, focando-se em slogans com pouco conteúdo. É obrigatório avançar com medidas de implementação concreta e discuti-las em campanha eleitoral. Dou como exemplos: medidas concretas para fixar médicos no SNS, como combater a fuga de alunos de ensino secundário para o privado, como financiar um plano de construção em massa de habitação pública ou como retomar a construção de grandes obras públicas como linhas ferroviárias que conectem as várias capitais de distrito do país. Até agora isto não foi feito, fala-se, mas não há uma longa elaboração do que vai ser feito e como será feito.

“Só temos uma democracia viva se tivermos os partidos democráticos fortes e uma saudável confrontação de ideias.”

Em segundo lugar é necessário criar uma comunicação focada no futuro. Sem nunca deixar de dar importância aos valores conquistados em Abril, temos que abandonar a nostalgia do 25 do abril que já foi há 50 anos. É perentório abandonar a melancolia e a postura altiva de criticar somente o que os outros fazem e ir para o campo de batalhas com novas armas. Isto pode ser feito com uma revisão das formas de comunicação de política, através de uma melhor aposta nos novos meios de comunicação, da conquista das ruas e do foco num mundo alternativo que poderia ser construído com medidas diferentes daquelas que foram implementadas. A esquerda tem que abrir horizontes, quase como naquela cena cómica, na qual Bruno Nogueira abrindo a mãos diz “O mundo é bué cenas”. Só assim, será a esquerda capaz de captar novamente a imaginação dos eleitores.

Por fim, numa democracia saudável, por mais que as eleições possam não ser desejadas, votações para a casa da democracia são e devem ser uma festa. Por mais defeitos que o Regime de Abril possa ter, eles deu-nos a possibilidade de sermos nós a criar o futuro. Urjo a esquerda a repensar-se e a apresentar-se com força e, honestamente, a direita também. Só temos uma democracia viva se tivermos os partidos democráticos fortes e uma saudável confrontação de ideias. Portanto, para estas eleições, se queremos continuar a viver em democracia, só há uma maneira de o fazer: deixemo-nos o debate de pocilga para os porcos e foquemos a nossa energia no debate de políticas para o país.

* O 93 percent Club é uma comunidade no Reino Unido para pessoas que frequentaram a escola pública e construída sobre o princípio de que pessoas educadas em escolas públicas devem ter o mesmo acesso às redes de apoio, conhecimento e influência que historicamente beneficiaram os seus pares educados em escolas particulares.

Sugestão do autor

“Pescadores” de Raúl Brandão, escrito em 1923, é um livro que nos leva pelo imaginário da costa portuguesa. O escritor pinta-nos a costa portuguesa através de uma prosa poética que nos faz imaginar a beleza do mar e das praias, ao mesmo tempo, que profetiza o heroísmo de todos aqueles pescadores e mulheres que sofreram por causa do mar. É um livro no início difícil de ler, porque é necessário entrar no imaginário e estilo do autor, mas assim que se entranha, somos um pincel nas mãos de Raúl Brandão.

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