A Europa não é Portugal
Não fiz a criança sozinha, disse-lhe por telefone aos gritos, porque já passaram trinta e três dias desde que se pôs na alheta e nos deixou, a mim e ao nosso filho, nesta casa de merda no Barreiro, um terceiro andar sem elevador, dois dias depois do miúdo ter nascido disse-me que ia ganhar dinheiro noutra terra, que aqui neste país não nos safamos sendo estrangeiros, que a Europa não é Portugal nem nada que se pareça, que Portugal foi só a porta de entrada para a Europa a sério, onde se ganha dinheiro a valer e se tem uma casa decente, diferente desta no Barreiro.
Mas eu não quis que ele se fosse embora, eu só tenho vinte anos e sou uma estrangeira no Barreiro com um bebé que chora dia e noite quando o ponho ou tiro do berço, por isso tenho de andar sempre com ele ao colo, doem-me os braços e as costas e os mamilos, tenho o mamilo esquerdo em sangue, dói tanto que decidi passar a dar-lhe biberão a noite passada, já não aguento mais, sem dormir há trinta e cinco dias, abatida como só as mães desamadas podem ser, e eu tenho a certeza de que o pai do meu filho nos abandonou, já terá alguma puta no Luxemburgo?, e eu que me amanhe aqui sozinha com uma criança que não faz mais que chorar e cagar e mijar as fraldas, que são caras e que tenho de substituir de hora a hora, esta criança que é um alarme que profetiza as tarefas infindáveis que parecem a vida toda daqui em diante.
Volto a ligar-lhe mas o filho da puta não atende, provavelmente bloqueou-me, não é a primeira vez que o faz, o miúdo voltou a chorar e eu não sinto nada, o cansaço é tanto que tenho uma nuvem entre os olhos e o cérebro que me tolda todo o apartamento, o pensamento, quero dizer, vou deixá-lo chorar um bocado, pode ser que se canse ou que sufoque um bocadinho no próprio choro, eu sinceramente não quero saber, sei que é horrível este pensamento, sim, provavelmente sou uma mãe horrível, só queria dormir duas horas seguidas, sem choros, abraçada novamente ao meu marido nesta casa de merda onde deitados na cama avistamos a risca de bolor em redor das molduras da janela do nosso quarto, uma sombra como nas pinturas, e ao menos estávamos em silêncio, só nós dois, eu e aquele cabrão que me destruiu a vida e que eu odeio tanto porque através dele soube o que era o ódio e o amor, que as duas coisas estavam à distância de um passinho de bebé, eu já tinha ouvido dizer mas não acreditava, que disparate, o amor estar assim tão perto do ódio, mas é verdade, é verdade, e eu só penso em vingar-me dele.
Seja lá como for, odeio-o tanto agora na medida justa do quanto já o amei, sei bem que virei a outra face da moeda, o bebé chora, continua a berrar e eu sinceramente não sei o que fazer, seja como for não se vai calar por muito tempo, por mais mimo e leite que lhe dê, também se armou em fino com o biberão esta noite, sai ao pai, prefere destruir-me o peito com as gengivas sedentas de alimento ao leite da farmácia, mas eu sou uma pessoa, não uma vaca leiteira, sou uma pessoa, embora não me tenha sentido como tal nos últimos tempos, e não é culpa do miúdo, nós já não estávamos bem durante a gravidez, ele tentou deixar-me quando eu ainda estava grávida.
Vejam bem um animal daqueles, abandonar a mulher que carrega um filho dele, eu devia ter abortado mas nunca me passou tal coisa pela cabeça, achei que este miúdo, ao fim e ao cabo, podia ajudar a manter-nos juntos, que pensamento à moda antiga, que idiotice de merda, ele disse que queria ser pai e eu também queria ser mãe, só não quis que fosse assim, não queria sê-lo sozinha, eu não o fiz sozinha, disse-lhe há bocado aos gritos por telefone e ele desligou a chamada, são trinta e três dias sozinha com um bebé, sei que estou a enlouquecer, sei que continuo grávida, que dentro de mim há uma Medeia a dar os primeiros pontapés.