“A Europa tem de admitir a hipótese de se encontrar só”, afirma Ramalho Eanes
O ex-Presidente da República António Ramalho Eanes diz temer um conflito à escala mundial, considerando que a situação atual, “em mudança acelerada”, é sobretudo preocupante para a Europa.
No livro “Palavra que conta”, publicado este mês pela jornalista Fátima Campos Ferreira, o ex-Presidente sustenta que se os Estados Unidos não conseguirem responder de “forma conveniente” à situação criada pela invasão da Ucrânia, “a Europa tem de admitir a hipótese de se encontrar só”, o que implicará um esforço de pelo menos 4% do orçamento dedicado à defesa.
O livro, com a chancela da Porto Editora, nasce a partir de uma entrevista televisiva da jornalista ao general, transmitida em maio passado, tendo sido alargada e completada em múltiplas conversas depois do verão.
Ramalho Eanes expressa a sua preocupação com a situação no continente europeu, fruto da guerra, recordando que as origens deste conflito remontam à queda do Muro de Berlim e ao desmoronamento do império soviético, e radicam também em “demasiados erros e ambições” da parte dos Estados Unidos, da Europa e da Rússia.
“Estamos de novo em pré-guerra”, comenta. “A Ucrânia é para a Rússia uma questão existencial, enquanto não o será para os Estados Unidos”, afirma o general, para quem “uma derrota militar e política na Ucrânia é, pois, inaceitável para a Rússia”.
Ao mesmo tempo, Eanes considera que o Ocidente não mostrou determinação estratégico-militar para enfrentar a Rússia, tendo fornecido tarde e de forma insuficiente meios militares à Ucrânia.
“À guerra mundial pode levar-nos qualquer problema grande que possa surgir entre os Estados Unidos e a Rússia na Ucrânia”, afirma o general, manifestando-se ciente da escalada a que pode conduzir a tentativa da administração americana de tentar inverter a situação militar, implicando-se mais na guerra, autorizando a Ucrânia a utilizar os mísseis balísticos táticos, com alcance de 300 km [o que de facto, já aconteceu] e os mísseis cruzeiro anglo franceses, com alcance de 550 km.
“A utilização destes mísseis contra a Rússia implica que seja pessoal da NATO a fornecer pelo menos os dados do satélite para orientar os mísseis contra os alvos”, recorda.
O general observa no entanto que apesar das consequências de uma utilização maciça destas armas a todos os níveis – e que podem abrir caminho ao nuclear, segundo afirma – Putin não recusará negociações de paz.
A situação na Europa é outro dos problemas que suscita a apreensão de Ramalho Eanes, que reconhece a existência no continente de divisões, problemas políticos e económicos, falta de liderança e também carência de investimento nas indústrias de defesa.
O general prevê que antes de dois ou três anos, os países que têm capacidade de produzir armamento “de grande qualidade”, como a França, Alemanha e Suécia, não conseguirão produzi-lo na quantidade necessária, o que torna ainda mais complexa toda a situação.
O general reflete também, entre outros temas, sobre os partidos e a crise de representação política, objeto de um capítulo único e no qual critica o atual sistema eleitoral em Portugal, por tratar de “forma desigual, no espaço nacional, os eleitores”.
Ramalho Eanes é igualmente muito crítico do que qualifica como a “colonização” da administração pública do Estado e das autarquias pelos partidos do “arco do poder” (PS e PSD, sozinho ou em coligação com o CDS), por fazerem o que considera ser a “ocupação partidária” dos lugares de direção.
Segundo o ex-Presidente, “os critérios do saber, da competência e do mérito foram, por vezes, substituídos pela fidelidade partidária, solidariedade e interesses vários e malsãos”.
Quanto ao 25 de Abril, Ramalho Eanes diz que uma das suas “grandes mágoas” é, num momento em que se festeja os 50 anos daquela data, não se homenagear a importância de Melo Antunes em todo o processo.
“A personagem mais importante do 25 de Abril foi Melo Antunes. Porque era o homem que tinha mais formação política que a maioria dos militares e que conseguiu olhar para as coisas, não de uma maneira simplista, mas olhar para a complexidade, e responder-lhe. E assumir, em todas as alturas em que isso era indispensável, posições de grande coragem”, diz.