A execução sublime (mas não transcendental) de Hania Rani na Casa da Música
No seio da música instrumental – um pouco no que consiste de pós-clássico – cada vez mais ouvida pelo público em geral, entre os rostos dos europeus Ludovico Einaudi, Nils Frahm e Olafur Arnalds, surge um polaco: o rosto feminino de Hania Rani. Um rosto que se distingue dos demais por, para além de caminhar no suave limbo entre a música instrumental e minimalista e a eletrónica e bastante rítmica, tem vindo a importar a voz para a sua magnitude musical. De origem dotada em música clássica, foi incorporando o jazz que foi aprendendo durante a sua educação musical, toda ela feita no seu país.
Atualmente sob a chancela da Gondwana Records do também músico Matthew Halsall, Rani tem sido presença em constante evolução musical, já indo longe a sua estreia em “Biala Faga” (2015), ao lado da violoncelista sua conterrânea Dobrawa Czocher, com quem também fez “Inner Symphonies” (2021, com o selo da emblemática Deutsche Grammophon, a mesma que formalizou a remasterização de “Biala Faga”). Aliás, Dobrawa acompanhou-a no grupo Donowe Melodie, de 2012 a 2014, naquele que seria o primeiro de dois grupos dos quais Rani fez parte, sendo o outro de nome teskno, com a voz de Joanna Longic, materializado em “mi” (2018). A solo, “Esja” (2019), “Home” (2020), “Music for Film and Theatre” (2021, com várias peças usadas em filmes e teatros) e “Ghosts” (2023) foram os versáteis e marcantes trabalhos que acompanharam as bandas sonoras de “Venice – Infinitely Avant-garde” (2022) e de “On Giacometti” e “The Lost Flowers of Alice Hart” (ambas em 2023).
Naturalmente, o destaque vai para o mais recentemente lançado, “Ghosts”, que conheceu o público em outubro passado. Contando, entre outras, com as colaborações de Arnalds – “Whispering Home” – e de Patrick Watson – “Dancing with Ghosts” -, a polaca faz valer o seu (interessante) potencial vocal e coloca-o em diálogo com os já reconhecidos predicados ao piano e ao(s) sintetizador(es). Há uma chegada cada vez maior à ideia de uma arte completa, abrangente, que chega mais longe pela capacidade de alargar as fronteiras e de criar novos espaços de criação e de encontro. Trata-se de um disco duplo que assume, como principal fonte de inspiração, as montanhas suíças e, em especial, um velho sanatório no qual os locais acreditavam pairar fantasmas. A dicotomia entre a vida e a morte é, desta feita, um convite para esse risco e essa novidade que abandona a redução ao pós-clássico e à música ambiente e que ambiciona uma conversa com a linguagem pop, a partir da condução conceptual do islandês Viktor Orri Árnasson.
Foi a este encontro de diferentes enquadramentos temporais e musicais que fomos à Casa da Música – não há melhor lugar na cidade do Porto para a acolher – assistir à apresentação do seu repertório, em especial de “Ghosts”. Naquele que foi o regresso à cidade Invicta três anos depois (havia ido ao M.Ou.Co com Dobrawa Czocher, após ter estado em 2019 a solo), Hania Rani apresentou-se de novo individualmente, acompanhada somente pelo seu forte aparato instrumental, entre eles o piano e os sintetizadores. Um ambiente soturno e etéreo que também se sentiu um pouco por toda a Europa até chegar à Aula Magna de Lisboa e à cidade ocidental e costeira do Porto, numa plateia repleta e sem lugares à disposição.
Hania Rani, ao contrário do que havia acontecido em Lisboa, foi pontual e abriu logo o seu leque musical com as explorações sónicas e luminosas de “Oltre Terra” e de “24.03”, que fez lembrar o que de melhor há na música de drones e que reportou um pouco à musicalidade de Nils Frahm. As viagens que se seguiriam iriam ao encontro da dimensão vocal da polaca, com “Don’t Break My Heart”, “Hello” ou “Dancing with Ghosts” em destaque; mesmo com as incursões de “Komeda”, “Thin Line” ou “Leaving”, já no encore. Uma das melhores coisas que este concerto proporcionou foi a capacidade de Rani se manter em autênticos monólogos musicais por uma data de tempo, tocando várias das suas peças ininterruptamente, parando, somente, por três ou quatro ocasiões ao longo de todo o concerto.
Daí também que o público se tenha expresso de modo mais firme e entusiasta, contendo-se nos aplausos e ficando embevecido quando a pianista revelou que era um sonho seu atuar na Casa da Música e que gostava muito da cidade do Porto. Contando com os seus melhores amigos em toda a primeira fila da plateia, a viagem pela sua musicalidade prosseguiu por volta de uma hora e meia de extensão. Foi uma viagem que teve um pouco de tudo, já que Rani equilibrou a sua apresentação por todo o aparato que trouxe para o palco. Do piano convencional, fomos ter à distorção e à eletricidade dos sintetizadores e às teclas, que fizeram a ponte entre as mencionadas camadas musicais. As ovações e a concentração plena (exceto uns zunzuns aqui e ali, assim como uns telemóveis) mostraram o gosto que um público eclético, composto por membros das várias faixas etárias e de diferentes nacionalidades, tiveram nesta noite de musicalidade perante alguém tão simpática, que até considerou a audiência tímida no momento em que a artista se apresentou.
Contudo, não deixa de pairar a sensação no ar de que Hania Rani, tecnicamente a roçar a perfeição na execução e na capacidade que tem de o ser nos vários equipamentos, à sua disposição, poderia ser ainda melhor. Enquanto tenta ser tanto de tanto, desde o típico clássico (ou já o pós-clássico) à eletrónica, sem esquecer, claro está, o jazz e até a música ambiente, a polaca acaba por se dispersar um pouco no meio de tantos idiomas. Mesmo que se possa considerar o seu caminho bem-sucedido, paira a sensação de que poderia estar mais plena, mais à imagem daquilo que conseguiu com “Esja” (2019) ou até com “Inner Symphonies” (2021). “Ghosts” é uma expressão de querer ir mais além, de encontrar aventura e risco e que invoca a sua terna voz para a criação, mas perde, salvo a espaços, na capacidade de fazer transcender e de se comprometer com essa realidade que só se sente ao ouvido e no espírito. Apesar de ser uma experiência muito mais enriquecedora e conseguida escutar o disco ao vivo, não foi o concerto transcendental que as faixas iniciais prenunciaram,.
Hania Rani trouxe um compêndio de como executar a música de forma sublime e exemplar, mas não deixa de ter, em si, um tanto ou quanto de querer ir mais além. Algo que, talvez, não o encontre enquanto explora novos mundos, mas chegue lá antes através da capacidade de ser tão boa naqueles em que já habita. Não há medo em ocupar o mesmo espaço de outros, como Frahm ou Arnalds, já que não lhes fica a dever muito no que toca à qualidade da sonoridade e à repercussão no exterior. Aquilo que deixou na Casa da Música foi mais um testemunho de alguém que, mesmo sendo diferenciada, não precisa de o forçar com tantas oscilações no estilo das composições que faz. Basta ser ela mesma, brilhante na interpretação e nos sinais que vai dando de abrir horizontes muito, mas muito profundos. Quiçá da próxima a transcendência nos chegue.