A extrema-direita e a nossa senhora do TikTok
A mais recente capa da revista Visão foca-se numa investigação anémica da autoria de Mafalda Anjos, intitulada “TikTok e os jovens: A máquina de fazer extremistas”. Apesar de incluir bons contributos de investigadores respeitáveis na área, que lançam hipóteses acerca do futuro da plataforma, a autora perde-se nos dados, nos palpites e no paternalismo, não apresentando soluções e escolhendo difundir os nomes e as vozes daqueles que são os principais influencers da extrema-direita portuguesa tiktokiana. A investigação é de tal forma firme e rigorosa, repare-se, que não menciona sequer que o Partido Comunista Português (PCP) está, ao contrário do que foi apresentado, presente na plataforma, tendo cerca de 2742 de seguidores. O lapso já foi retificado nas versões digitais, embora as versões em papel continuem com a informação errada e isso tem um peso no campo de percepção dos leitores.
Vamos um bocadinho atrás: em 2017, André Ventura, apadrinhado por Pedro Passo Coelho, deu declarações polémicas enquanto era candidato do PSD/CDS-PP à Câmara Municipal de Loures. Graças a estas, perdeu o apoio do CDS-PP, mas em contrapartida ganhou grande destaque nos principais órgãos de comunicação social. Foi cedo notícia do Correio da Manhã, Observador, O Jornal Económico e recebido por Manuel Luís Goucha no programa “Você na TV!”, da TVI.
“As classes dominantes investem num partido autoritário de extrema-direita, aparentemente fresco e inovador, mas o objetivo continua a ser assegurar acumulação de capital, asfixiar impulsos revolucionários e conservar o sistema capitalista vigente. Por mais que o líder do Chega diga o contrário, ele é só mais um carrasco do próprio sistema.”
Algumas investigações já deram conta dos financiamentos ao partido de extrema-direita. A investigação da Visão, de Miguel Carvalho, evidenciou o sistema solar de grandes empresários e advogados que almoçaram com André Ventura. A Revista Sábado, de Alexandre R. Malhado, revelou os financiadores e as transferências para o partido por parte de membros da família Champalimaud, Mello e outros, somando, em 2021, segundo o autor, mais de 265 mil euros em donativos, um aumento de 244% em relação aos 77 mil euros que tinham sido recebidos em 2020. Nesse mesmo ano, Mariana Mortágua, atual líder do Bloco do Esquerda, já denunciava na Assembleia da República os envolvimentos obscenos dos dirigentes e financiadores do partido em casos de corrupção e estratagemas financeiros. As classes dominantes investem num partido autoritário de extrema-direita, aparentemente fresco e inovador, mas o objetivo continua a ser assegurar acumulação de capital, asfixiar impulsos revolucionários e conservar o sistema capitalista vigente. Por mais que o líder do Chega diga o contrário, ele é só mais um carrasco do próprio sistema.
Hoje, a exposição mediática do agora líder do partido de extrema-direita é incomparavelmente superior ao ano de 2017. Em novembro de 2023, o relatório da Marktest, que identificou os protagonistas de informação televisiva, mostra que André Ventura, já presidente do partido Chega, ocupava o terceiro lugar, tendo feito intervenções na primeira pessoa em 146 notícias, com 6 horas e 17 minutos de duração, tendo ficado apenas atrás do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, na segunda posição, e do Primeiro-Ministro, António Costa, na primeira posição. Sempre foi dado ao líder do partido espaço mediático para defender publicamente prisão perpétua, castração química, confinamento de determinadas etnias durante a pandemia de COVID-19, privatização da segurança social, fim do serviço nacional de saúde e todos os serviços públicos, ódio, violência e ataques constantes a mulheres, populações racializadas, imigrantes, LGBTI+ e aos trabalhadores.
“Em novembro de 2023, o relatório da Marktest, que identificou os protagonistas de informação televisiva, mostra que André Ventura, já presidente do partido Chega, ocupava o terceiro lugar, tendo feito intervenções na primeira pessoa em 146 notícias, com 6 horas e 17 minutos de duração, tendo ficado apenas atrás do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, na segunda posição, e do Primeiro-Ministro, António Costa, na primeira posição.”
Apesar de existirem jornalistas e artigos absolutamente notáveis de crítica e condenação profunda ao crescimento da extrema-direita mundial, publicados por exemplo em jornais independentes como o Setenta e Quatro, estes nunca parecem suficientes tendo em conta o peso e autoridade da direita e extrema-direita no espaço mediático. Em 2019, um estudo do ISCTE, “A Esquerda no Parlamento e a Direita na Televisão”, já apontava para uma maioria masculina de direita no campo dos comentadores televisivos. Em 2023, os nossos ecrãs mostram-nos um espaço público repleto de jornalistas, comentadores, apresentadores, empresários e artistas cada vez mais à direita. Segundo o Digital News Report 2023, Portugal continua a ser um país onde a televisão mantém um papel de destaque para consumo de informação, sendo usada por 67,7% dos portugueses.
Portanto, apesar de existirem redes sociais digitais que promovem conteúdo de extrema-direita, não nos podemos esquecer que foram os meios tradicionais, acompanhados pelo Tribunal Constitucional, a dar o primeiro palco ao ódio e à desinformação fascista. Devemos pensar, sim, sobre as causas do descontentamento de uma parte da população. Podemos abrir o pensamento às implicações das novas estratégias de promoção, comunicação e recrutamento da extrema-direita dentro das redes sociais digitais, mas recuso-me a colocar o TikTok como principal fonte de adesão a este partido, quando foram os financiamentos e o poder dos meios tradicionais a colocar André Ventura nas revistas, nos jornais e nas televisões, a convidar um membro neonazi para o programa da manhã, a dar espaço a uma comentadora criminal extremista, a dar espaço a abusadores em reality-shows, a ocultar personalidades de esquerda e a promover agressões inaceitáveis aos próprios jornalistas.
Tendo isto em conta, podem escrever os artigos que quiserem sobre as implicações de uma rede social emergente, mas têm de ter a coragem e a responsabilidade de assumir a sua própria negligência, quando alguns executam de forma regular, através dos meios profissionais que dirigem e das redes sociais que gerem, um miserável branqueamento da extrema-direita. Se nunca o fazem não é por lapso, é por terem uma espinha dorsal de miniatura, um presente simpático do diabo.