A fábrica de radicais
Valério Romão, 1974, licenciou-se em Filosofia e é escritor, contista, dramaturgo, tradutor. Seleccionado como Jovem Criador nacional no início do século, tem diversos livros publicados e é um dos nomes sonantes da nova literatura em Portugal. Foi finalista do Prix Femina 2016.
Há regras que nunca passaram por uma fase de redação e de concordância e que, ainda assim, são comummente reconhecidas e implicitamente aceites. Uma delas, e de que damos conta todos os dias e cada vez mais expressivamente, é a que consiste na impossibilidade de ter uma conversa ou discussão minimamente civilizadas no Facebook.
Paradoxalmente, quando o Facebook surgiu fê-lo com a promessa implícita de que seria uma comunidade; um lugar ideal para a troca de ideias, usando a quase omnipresença da internet para encurtar a distância entre pessoas para a medida mínima que medeia o espaço entre os olhos e o ecrã e entre os dedos e o teclado. Formalmente, não se pode dizer que não tenha resultado. Nunca estivemos tão próximos, de um ponto de vista técnico, e os smartphones foram decisivos na consolidação desta ideia de acessibilidade constante.
No que diz respeito ao que o Facebook pode ter acrescentado à qualidade da discussão, muito pouco. Ou melhor, antes pelo contrário. Da esquerda à direita, dos assuntos mais vagos aos mais concretos, o mínimo denominador comum parece ser a radicalidade na qual cada posição é expressa. A conversa deixou de acontecer na zona cinzenta que separa, de modo mais ou menos difuso, uma posição da outra, e que é, por excelência, a zona do consenso. Ou seja, o local onde duas posições antagónicas encontram espaço para negociar o que é necessário e o que é acessório para cada uma delas. No fundo, a posição da política.
No Facebook, que prometia tornar-nos todos agentes políticos com a força potencial das multidões, o que acontece, pelo contrário, é um estranho fenómeno de deturpação da gravidade do debate: duas posições extremadas atraem a maior parte dos interlocutores e, no meio, de onde poderia surgir a superação que algumas conversas profícuas geram, existe apenas vazio ou, no melhor e simultaneamente mais trágico dos casos, três ou quatro moderados a quem aqueles que estão nos extremos chamam traidores. E estranho tempo este no qual a posição moderada ou do bom senso se constituem como as mais radicais possíveis.
Seja o tema o turismo em Lisboa, o conflito israelo-palestiniano ou a canção merecedora de ir à Eurovisão, as posições são quase sempre radicais e imbuídas de uma força que a causa, muitas vezes, ora por ser distante ora por ser aparentemente menor, não parece merecer convocar.
Dir-se-á que o meio não ajuda. Um sujeito atrás de um ecrã tem uma confortável distância de segurança e não precisa de ser moderado na conversa, ao contrário do provavelmente teria de acontecer acaso a conversa acontecesse no mundo real. Ou mesmo que não fosse moderado, saberia que as consequências da radicalidade na esfera física são distintas e obrigam uma avaliação muito mais cuidada do modo como cada um se expressa.
Apesar de aborrecido e, de certo modo, até violar os termos contratuais que assinámos com a Internet (um mundo melhor por via da possibilidade de comunicação praticamente instantânea), se este fenómeno ficasse circunscrito à parte do mundo que é virtual, e mesmo que esta se tornasse cada vez mais a mais frequentada, bastaria ao sujeito ser parcimonioso na frequência das estádias no continente do digital para se manter a salvo desta maré de bílis.
O problema, porém, é que o imenso reservatório de ácido produzido pela interacção das pessoas nas redes sociais tem tendência a não ficar contido no espaço onde foi originado. Pouco a pouco, vai pingando sobre a sociedade e sobre os laços que lhe conferem forma, sobre a política e sobre as suas formas de criar consensos e sobre a própria família.
A promessa da comunicabilidade da escala global e de esta fazer com que nunca mais estejamos sós concretizou-se da forma mais trágica possível: o nazi do Uganda pode agora falar com o nazi do Uruguai; os terroristas mudaram-se para a internet; os racistas passeiam despudoradamente as suas convicções em grupos fechados que lhes fornecem a sensação de legitimação que procuravam.
A internet, no fundo, uniu-nos, é verdade. Mas mais por aquilo que odiamos do que por aquilo que amamos.
(Nota: esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização)