A falta de visão para a natureza em Portugal

por Cronista convidado,    23 Março, 2021
A falta de visão para a natureza em Portugal
Fotografia de Lingchor / Unsplash

Tudo está ligado. A epidemia da Covid-19, a destruição da natureza, as alterações climáticas…  A luta por um mundo mais saudável, sustentável e resiliente é cada vez mais urgente, sendo que um dos principais meios de o conseguir passa por restaurar e preservar zonas selvagens (1). Analisemos então como tem sido protegida a natureza em Portugal e a (in)operância das entidades portuguesas responsáveis para esse efeito.

Apesar de haver alguns sinais positivos como o desenvolvimento do Livro Vermelho de plantas (2), o censo do lobo ibérico em andamento (3), o aumento do orçamento do ICNF (4) ou a contratação de mais recursos humanos (5), o Estado ainda não vê a conservação da natureza como uma área prioritária.

São vários os casos que o provam: a recente condenação do Tribunal Europeu ao Estado Português por não proteger os habitats e espécies ameaçadas (6); os ainda escassos fundos disponibilizados ao ICNF ou o fraco desempenho do Fundo Ambiental, que utiliza apenas 2% do seu orçamento anual para a conservação da natureza e nos programas destinados a esta temática não dá preferência a entidades cuja principal missão é a proteção da natureza como ONGs. Empresas agrícolas e florestais são muitas vezes financiadas em programas destinados à conservação da natureza (7).

As nossas áreas protegidas estão ao abandono (8). No caso do Parque Natural da Serra da Estrela, há tão pouca vida selvagem que até o símbolo do parque é um floco de neve (9), apesar de ter potencial para ser um dos locais mais biodiversos do país (10). A realidade das áreas protegidas varia muito. O Parque Natural do Guadiana é maioritariamente composto por terrenos privados, enquanto que a Reserva Natural da Malcata é, em grande parte, uma área pública. Estas características condicionam as medidas que podem ser levadas a cabo.

No entanto, nas zonas em que o Estado detém propriedade, são possíveis medidas mais ambiciosas, como prova o trabalho realizado pela Rewilding Argentina (11) ou a African Parks (12). Estas organizações desenvolvem projetos em áreas protegidas degradadas, através de reintroduções de espécies localmente extintas, ações de promoção da regeneração natural, trabalho com populações locais, promoção do turismo de natureza e controlo do furtivismo.

Conseguem recuperar áreas degradadas em zonas com ecossistemas dinâmicos e resilientes com uma grande abundância e diversidade de vida selvagem. O que por sua vez cria oportunidades de desenvolvimento económico para as populações locais, por exemplo através do ecoturismo, o que ajuda a garantir uma conservação duradoura e sustentável das áreas protegidas (13).

Tirando o programa de reintrodução do lince ibérico, bastante mediático e partilhado com os nossos vizinhos Espanhóis, os programas de reintroduções ou reforços populacionais são quase inexistentes em Portugal. Programas de reintrodução inspiram as populações locais, atraem turismo para as regiões, promovendo o desenvolvimento económico, e geram atenção mediática ajudando a sensibilizar as pessoas para importância da conservação da natureza.

Se o Estado Português tivesse uma visão mais ambiciosa para a conservação da natureza em Portugal, talvez em breve fosse possível ler títulos de notícias tais como “Castor de volta a Portugal depois de 500 anos”, “Cabras montesas de regresso à Serra da Estrela”, ou “Águia Rabalva reconquista a Costa Vicentina”. Este tipo de projetos, que têm como objetivo principal restabelecer cadeias tróficas completas e tornar os ecossistemas mais completos e resilientes, inspiram e oferecem esperança.

Em Portugal falta claramente, ambição e visão nas ações de conservação da natureza. Por exemplo, a preferência pelo uso de cabras sapadoras (14) para controlo de biomassa em zonas de risco de incêndios rurais em detrimento da reintrodução de cabras montesas um pouco por todo o território (15) – uma espécie que desempenharia essa função de forma natural e com custos mais baixos. Ou ainda grandes herbívoros como cavalos e bovinos em regime semisselvagem ou selvagem, também poderiam desempenhar um papel importante na prevenção de incêndios florestais ao limpar a paisagem.

Um outro exemplo que podemos examinar é o uso de 12 milhões de euros num programa de restauro fluvial levado a cabo pela APA de 2018 a 2020 (16) que não resolve o desequilíbrio nos rios e ribeiras de Portugal. O castor poderia desempenhar as ações de restauro fluvial e ainda aumentar a disponibilidade de água na paisagem, expandir zonas húmidas e filtrar sedimentos e nitratos (17). Por outo lado há demasiadas barragens e açudes que impedem a migração de peixes de água doce (18), e espécies invasoras que competem com as nativas (19).

Os nossos vizinhos espanhóis ou o Governo Regional dos Açores, co-financiam programas de conservação Europeus como o LIFE (20), para assim aumentar os fundos destinados à conservação da natureza. O Estado Português, pelo contrário prefere “projetos próprios” ao invés de usar fundos europeus (21).

Urge repensar a conservação da natureza em Portugal.

Crónica de Daniel Veríssimo,
Economista apaixonado pela natureza. Leitor de artigos e escritor nas horas vagas. Membro da rede internacional Rethinking Economics.

Fontes:

  1. https://nationalgeographic.sapo.pt/natureza/grandes-reportagens/2575-a-pandemia-lembrou-nos-a-necessidade-de-travarmos-a-decadencia-do-planeta
  2. https://listavermelha-flora.pt/inicio/
  3. https://www.icnf.pt/noticias/novocensonacionaldeloboiberico
  4. https://expresso.pt/orcamento-estado/2020-10-12-OE-2021.-Ambiente-vai-receber-mais-264
  5. https://www.jn.pt/nacional/icnf-autorizado-a-contratar-100-tecnicos-superiores-e-250-sapadores-florestais-12611574.html
  6. https://visao.sapo.pt/atualidade/sociedade/2019-09-05-Tribunal-Europeu-diz-que-Portugal-nao-consegue-proteger-as-suas-especies/
  7. https://expresso.pt/sociedade/2020-10-23-Apenas-2-do-Fundo-Ambiental-serviu-a-conservacao-da-natureza-nos-ultimos-quatro-anos
  8. https://www.publico.pt/2020/01/15/p3/cronica/portugal-selvagem-1900317
  9. http://www2.icnf.pt/portal/ap/p-nat/pnse
  10. https://www.forumcovilha.pt/noticias/noticia/?idn=12616
  11. https://rewildingargentina.org/
  12. https://www.africanparks.org/
  13. https://www.publico.pt/2020/12/15/p3/noticia/rewilding-conservacao-natureza-seculo-xxi-1942650
  14. https://www.publico.pt/2018/01/17/sociedade/noticia/governo-vai-criar-cabras-sapadoras-para-gestao-de-combustivel-florestal-1799711
  15. https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0277379117304663 (Fig 2)
  16. https://www.publico.pt/2020/04/13/local/noticia/governo-quer-reabilitar-seis-mil-quilometros-ribeiras-pais-1912160
  17. https://www.wilder.pt/historias/pode-o-castor-europeu-voltar-a-portugal/
  18. https://expresso.pt/sociedade/2020-12-31-Barragens-de-Portugal-foram-construidas-65-em-20-anos-mas-nem-todas-funcionam
  19. https://expresso.pt/sociedade/2017-04-25-Especies-exoticas-ameacam-rios-portugueses
  20. https://fundacion-biodiversidad.es/es/que-hacemos/como-lo-hacemos
  21. https://observador.pt/2016/11/13/portugal-desperdica-fundos-europeus-para-conservacao-da-natureza
  22. https://icnf.pt/
  23. https://www.instagram.com/icnf_oficial/
  24. https://www.facebook.com/InstitutodaConservacaodaNaturezaedasFlorestas/
  25. https://fundacion-biodiversidad.es/
  26. https://www.instagram.com/fundacionbiodiversidad/
  27. https://pt-pt.facebook.com/fundacionbiodiversidad

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