“A família Addams”, de Ricardo Neves-Neves: uma família mortiça

por Tiago Bartolomeu Costa,    9 Junho, 2025
“A família Addams”, de Ricardo Neves-Neves: uma família mortiça
Fotografia de Filipe Ferreira
PUB

Foquemo-nos no que importa: as maiores virtudes desta adaptação portuguesa de um musical sem grande histórico nem relevância particular, estão na qualidade do elenco e, nele, na representatividade de escolas de interpretação, e na encenação que faz, automaticamente, o que sabe já ter feito melhor. O mais, chega a pouco.

Nem A Família Addams é um musical particularmente inspirado, nem as bem oleadas máquinas de venda de direitos permitem que se possa fazer o que realmente estivesse à altura de exemplos anteriores de espetáculos encenados e escritos por Ricardo Neves-Neves, como Banda-sonora (2018) ou O Livro de Pantagruel (2023), ambos coassinou com Filipe Raposo, demonstrativos de como referências tais como as das personagens criadas em 1938 por Charles Addams, podiam ser bem trituradas e evolvidas com um certo ar de perfume novo. Eis o problema deste musical – e desta vaga de cultura de importação de musicais anglo-saxónicos para cumprir um repertório de fascínio massificado, com meios que não são os mais completos, mas apostados no fetichismo de públicos já conquistados.

Fotografia de Filipe Ferreira

Aqui, não fosse o reconhecido empenho do encenador em transformar cada gesto, cada esgar e cada frase num apontamento irónico e auto-sabotagem, e pouco haveria a contar, apesar do esforço de tornar refrescante uma ideia com quase 100 anos, nascida na banda-desenhada, que passou pela televisão norte-americana e, sobretudo e para o que aqui importa, reanimada pelo filme de Barry Sonnenfeld.

Num musical sem uma grande canção, e com uma narrativa nos antípodas da excentricidade das personagens, Ricardo Neves-Neves constrói o possível, numa encenação onde se veem as fissuras das marcações e que, por força das qualidades individuais no elenco, permite olhar para um guião pré-determinado e fingir divertir-se com o pouco que lhe é possível fazer. O elenco do espetáculo – misteriosamente ausente dos materiais de comunicação – é a grande mais-valia de um musical que é, ainda, demonstrativo de uma qualidade que ganharia em ter originais e não versões em busca de bilheteira fácil (mas é um negócio, sabemos, e no entanto…).

Fotografia de Filipe Ferreira

É difícil num espetáculo tão espartilhado, e ainda mais difícil quando algumas sequências se prolongam e muito ganhariam em serem “editadas”, mas não aquelas que fazem destas três figuras verdadeiras personagens. É quando podemos perceber que existem interpretes por detrás das caricaturas que percebemos que vale a pena olhar para este espetáculo como um exercício de composição.

Brienne Keller, que interpreta Wednesday – personagem longe, muito longe, da perversidade da personagem no filme homónimo, e mesmo sem os requintes de malvadez da série da Netflix – destaca-se pela forma como salva da caricatura uma figura manietada por descrições pueris do comportamento juvenil. O mesmo pode ser dito de João Maria Cardoso, o irmão Pugsley, que salva uma personagem abandonada pela dramaturgia do espetáculo, a servir de suporte, e não de contraponto, às errâncias da irmã e que, por saber usar a seu favor as sombras para onde o lançam, trabalha o mais perto possível do material original, a banda-desenhada.

Fotografia de Filipe Ferreira

Ver Joana Manuel (Morticia Addams – construção mais do que complexa de uma figura central de uma ideia de família provocatória, que a montagem faz por normalizar), Ana Brandão (Avó Addams – a graça que tem imaginar nos seus silêncios e presença, os ecos de Judith Malina, que a interpretou no filme, rainha-mãe do teatro independente e radical norte-amerino The Living Theatre) e Sílvia Filipe (Alice Beineke – num registo que trabalha fisicamente a palavra e a liberta de um simples espelho de Morticia) a irem para lá da caricatura, e a emprestarem não só a riqueza do seu colorido vocal mas, e sobretudo, a inteligência emocional de preencher o interior de personagens de cartão, permite perceber que cabe aos atores construir uma dramaturgia que vá para além do efeito. São escolas de interpretação, são percursos profissionais e são modos de reação que evidenciam, e se distinguem, por entre interpretações formatadas e materializações diretas do papel. Se existirem razões, para lá das financeiras, na adaptação destes espetáculos, que seja, então, pela possibilidade de trazer a diversidade de escolas e de modos de pensar a composição teatral. O exercício, sendo exigente, resolverá bastante mais do que o anseio pela eficácia imposta como cláusula contratual.

A Família Addams, produção da Força de Produção e encenação de Ricardo Neves-Neves, com libreto de Marshall Brickman & Rick Elice (tradução Ana Sampaio) e música e letras Andrew Lippa  (direcção musical Artur Guimarães), estreou  a 5 Março 2025 no Teatro Maria Matos, em Lisboa.

VER GALERIA

Gostas do trabalho da Comunidade Cultura e Arte?

Podes apoiar a partir de 1€ por mês.