“A família Addams”, de Ricardo Neves-Neves: uma família mortiça

Foquemo-nos no que importa: as maiores virtudes desta adaptação portuguesa de um musical sem grande histórico nem relevância particular, estão na qualidade do elenco e, nele, na representatividade de escolas de interpretação, e na encenação que faz, automaticamente, o que sabe já ter feito melhor. O mais, chega a pouco.
Nem A Família Addams é um musical particularmente inspirado, nem as bem oleadas máquinas de venda de direitos permitem que se possa fazer o que realmente estivesse à altura de exemplos anteriores de espetáculos encenados e escritos por Ricardo Neves-Neves, como Banda-sonora (2018) ou O Livro de Pantagruel (2023), ambos coassinou com Filipe Raposo, demonstrativos de como referências tais como as das personagens criadas em 1938 por Charles Addams, podiam ser bem trituradas e evolvidas com um certo ar de perfume novo. Eis o problema deste musical – e desta vaga de cultura de importação de musicais anglo-saxónicos para cumprir um repertório de fascínio massificado, com meios que não são os mais completos, mas apostados no fetichismo de públicos já conquistados.

Aqui, não fosse o reconhecido empenho do encenador em transformar cada gesto, cada esgar e cada frase num apontamento irónico e auto-sabotagem, e pouco haveria a contar, apesar do esforço de tornar refrescante uma ideia com quase 100 anos, nascida na banda-desenhada, que passou pela televisão norte-americana e, sobretudo e para o que aqui importa, reanimada pelo filme de Barry Sonnenfeld.
Num musical sem uma grande canção, e com uma narrativa nos antípodas da excentricidade das personagens, Ricardo Neves-Neves constrói o possível, numa encenação onde se veem as fissuras das marcações e que, por força das qualidades individuais no elenco, permite olhar para um guião pré-determinado e fingir divertir-se com o pouco que lhe é possível fazer. O elenco do espetáculo – misteriosamente ausente dos materiais de comunicação – é a grande mais-valia de um musical que é, ainda, demonstrativo de uma qualidade que ganharia em ter originais e não versões em busca de bilheteira fácil (mas é um negócio, sabemos, e no entanto…).

É difícil num espetáculo tão espartilhado, e ainda mais difícil quando algumas sequências se prolongam e muito ganhariam em serem “editadas”, mas não aquelas que fazem destas três figuras verdadeiras personagens. É quando podemos perceber que existem interpretes por detrás das caricaturas que percebemos que vale a pena olhar para este espetáculo como um exercício de composição.
Brienne Keller, que interpreta Wednesday – personagem longe, muito longe, da perversidade da personagem no filme homónimo, e mesmo sem os requintes de malvadez da série da Netflix – destaca-se pela forma como salva da caricatura uma figura manietada por descrições pueris do comportamento juvenil. O mesmo pode ser dito de João Maria Cardoso, o irmão Pugsley, que salva uma personagem abandonada pela dramaturgia do espetáculo, a servir de suporte, e não de contraponto, às errâncias da irmã e que, por saber usar a seu favor as sombras para onde o lançam, trabalha o mais perto possível do material original, a banda-desenhada.

Ver Joana Manuel (Morticia Addams – construção mais do que complexa de uma figura central de uma ideia de família provocatória, que a montagem faz por normalizar), Ana Brandão (Avó Addams – a graça que tem imaginar nos seus silêncios e presença, os ecos de Judith Malina, que a interpretou no filme, rainha-mãe do teatro independente e radical norte-amerino The Living Theatre) e Sílvia Filipe (Alice Beineke – num registo que trabalha fisicamente a palavra e a liberta de um simples espelho de Morticia) a irem para lá da caricatura, e a emprestarem não só a riqueza do seu colorido vocal mas, e sobretudo, a inteligência emocional de preencher o interior de personagens de cartão, permite perceber que cabe aos atores construir uma dramaturgia que vá para além do efeito. São escolas de interpretação, são percursos profissionais e são modos de reação que evidenciam, e se distinguem, por entre interpretações formatadas e materializações diretas do papel. Se existirem razões, para lá das financeiras, na adaptação destes espetáculos, que seja, então, pela possibilidade de trazer a diversidade de escolas e de modos de pensar a composição teatral. O exercício, sendo exigente, resolverá bastante mais do que o anseio pela eficácia imposta como cláusula contratual.
A Família Addams, produção da Força de Produção e encenação de Ricardo Neves-Neves, com libreto de Marshall Brickman & Rick Elice (tradução Ana Sampaio) e música e letras Andrew Lippa (direcção musical Artur Guimarães), estreou a 5 Março 2025 no Teatro Maria Matos, em Lisboa.