A famosa polémica do carteirista (primeira parte)
Não tinha nascido para aquilo, mas era naquilo que se tinha feito e se estava feito, não seria boa ideia desfazer. Esperava-o uma equipa de senhoras, que logo ali, à porta, se dispuseram a agradar-lhe os sentidos; Quer um café? Como é um directo, vamos ter de estar prontos antes da hora. E continuavam a explicar-lhe, sem ele ter pedido que lhe explicassem fosse o que fosse. Estava ali por causa da polémica, e queriam tanto que contasse a sua história que, da sombra à luz, nem tivera tempo de se preparar. Ainda sentiu o calafrio do costume quando, em cima da mesa do camarim, se amontoaram tesouros à mão de semear. Há apenas um dia, poderia ter ganho o dia com aquela apanha, como se dizia no ofício. Mas não, já não era um carteirista. Era um ídolo.
Como foi a sua infância? Começou logo, sem qualquer aquecimento, o jornalista. Tinham-lhe dito para evitar o típico Aaaaa, por isso lançou logo a primeira das centenas de frases que diria; Foi como todas as outras, cheia de sonhos, mas com constantes lembranças da realidade. Os meus pais eram pessoas simples, mas não eram pessoas simplificadas. Queriam o melhor para mim, mas também para eles próprios, para os meus quatro irmãos, uma irmã, dois avós presentes e um avô hospitalizado. Ao todo, estas onze pessoas queriam o melhor para si e para os restantes dez. O jornalista aguentou a surpresa perante uma resposta tão estruturada e fez logo a segunda pergunta; Mas não foi à escola? Fui, mas durante pouco tempo. Aquilo era bom demais para pessoas como nós, ou melhor, para pessoas como eu. A escola implica tempo livre e isso era coisa que, lá em casa, não existia, nem se fazia por existir. Cada dia representava um desafio diferente e um objectivo diferente, por isso de manhã havia uma pequena reunião preparatória, em que se definiam os objectivos estratégicos do dia. Como assim? Exactamente assim. O que precisamos de ganhar hoje e outro, que cada um se propunha a contribuir para isso. Ninguém era forçado a um número, cada um propunha o seu próprio número e só esse seria questionado no final do dia; e olhe que, quando era preciso questionar a ambição excessiva ou a preguiça inesperada, questionava-se com força. Batiam-lhe? Não. Exigiam que eu fosse coerente. Se disseste vinte, é vinte, não é dezanove. E assim aprendi a ser empreendedor.
Mas porquê aquela entrevista? Poderia ser a pergunta. Ainda no dia anterior nada faria imaginar tal acontecimento e, no entanto, ali estava ele a contar tudo sobre a sua vida, como se a sua vida contasse para alguma coisa. Tinha começado o dia como simples carteirista de uma linha de eléctrico e saído dele como ídolo das massas, e tudo por um acaso. Estando na fila, como se dizia no ofício, estava à espera da chegada do eléctrico seguinte, quando se deparou com o típico dilema do jovem carteirista latino. No início da fila uma daquelas raparigas loiras que se fazia imaginar, por pose e expressão, a mais desejável das amantes estrangeiras. No final da fila, uma senhora idosa, a quem só muito dinheiro poderia ter mantido naquele estado de estátua grega. De um lado, o desejo carnal, do outro, o desejo providencial. Dividido ao meio, cortado por dentro, Nando lançou os dados para o evento que mudaria a sua vida.