A famosa polémica do carteirista (segunda parte)
Ancorado na expectativa de que tudo pudesse correr bem, sabia que mais facilmente tudo correria pelo melhor. Avançou pela fila abaixo, até onde se encontrava a senhora idosa. Aparentemente simpático, sugeriu-lhe, no melhor estrangeiro de rua que tinha aprendido com os seus camaradas, como se dizia no ofício, que o acompanhasse até ao início da fila. Como seria de esperar, a senhora, gentilmente, recusou e deu-lhe braço para que se fizesse ao caminho. Nando não se faria ao caminho, sem a ajudar, insistia. Não se preocupe comigo, obrigado pela atenção, o senhor é um cavalheiro, mas não é necessário. Foram frases proferidas e, bem ou mal, traduzidas pelas testemunhas presentes. Nando, e nisso as testemunhas não repararam, fazia flutuar as suas leves mãos pelos discretos orifícios da mala que a senhora trazia a tiracolo. Nem ela, nem os restantes espectadores percebiam, mas a cada frase de insistência, eram mais os objectos que, dedo a dedo, Nando tocava e avaliava. Nada, dizia-lhe o anelar, mais nada, insistia o mindinho e finalmente um desiste, disse-lhe o indicador. Nada na composição da mala da idosa lhe apresentava lucro suficiente ao risco de furto, e rapidamente desistiu de ser esforçador naquela tarde de domingo.
Sobrava-lhe a marcação à loira estrangeira, que tinha destacado no início da fila. Mas onde estaria ela. Olhasse para onde olhasse, não a viu até ao primeiro grito da senhora idosa; Fui roubada! Lá disse na sua própria língua. E se há coisa em que a rua é poliglota é no alarme de roubo. Aqui, como em qualquer parte do mundo, o acontecimento é sempre similar: grito, repetido várias vezes ou não, reacções de espanto colectivas, pesquisa visual pelo culpado de tal acto, braços e mãos a apontarem na direcção da fuga, um ou outro espectador a avisarem das suas lesões físicas que os impedem da perseguição, e assim, sem um qualquer herói ocasional, cada vez mais raros nos tempos que correm, as coisas ficam-se por aí. Mas não ficaram.
Nando decidiu correr na direcção da loira, vá lá saber-se porquê. O seu corpo iniciou o movimento, sem o seu cérebro ter tido tempo de analisar consequências ou efeitos secundários de tal decisão. Não decidiu, reagiu, e a partir daí teremos de imaginar tudo na típica câmara lenta dos acontecimentos trágicos: O olhar belicoso da idosa para ele, os aplausos das crianças, as expressões invejosas dos outros machos alfa e até a banda sonora inadvertida, produzida por um automóvel recentemente parado, para observar a confusão. Filme parecia ser, e ainda mais filme ficou, quando Nando, sem perceber sequer como, se chegou rapidamente à sua peugada. Rapidamente demais, passou por ela, agarrou-se-lhe ao braço esquerdo, lançou rasteira à sua perna direita e num gesto jiu-jitsuano, levou-a ao chão. Nando, o carteirista, morria instantaneamente ali, naquela curva do passeio e nascia, por geração espontânea, Nando, o ídolo.