A famosa polémica do carteirista (segunda parte)

por Pedro Saavedra,    27 Outubro, 2021
A famosa polémica do carteirista (segunda parte)
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Ancorado na expectativa de que tudo pudesse correr bem, sabia que mais facilmente tudo correria pelo melhor. Avançou pela fila abaixo, até onde se encontrava a senhora idosa. Aparentemente simpático, sugeriu-lhe, no melhor estrangeiro de rua que tinha aprendido com os seus camaradas, como se dizia no ofício, que o acompanhasse até ao início da fila. Como seria de esperar, a senhora, gentilmente, recusou e deu-lhe braço para que se fizesse ao caminho. Nando não se faria ao caminho, sem a ajudar, insistia. Não se preocupe comigo, obrigado pela atenção, o senhor é um cavalheiro, mas não é necessário. Foram frases proferidas e, bem ou mal, traduzidas pelas testemunhas presentes. Nando, e nisso as testemunhas não repararam, fazia flutuar as suas leves mãos pelos discretos orifícios da mala que a senhora trazia a tiracolo. Nem ela, nem os restantes espectadores percebiam, mas a cada frase de insistência, eram mais os objectos que, dedo a dedo, Nando tocava e avaliava. Nada, dizia-lhe o anelar, mais nada, insistia o mindinho e finalmente um desiste, disse-lhe o indicador. Nada na composição da mala da idosa lhe apresentava lucro suficiente ao risco de furto, e rapidamente desistiu de ser esforçador naquela tarde de domingo.

Sobrava-lhe a marcação à loira estrangeira, que tinha destacado no início da fila. Mas onde estaria ela. Olhasse para onde olhasse, não a viu até ao primeiro grito da senhora idosa; Fui roubada! Lá disse na sua própria língua. E se há coisa em que a rua é poliglota é no alarme de roubo. Aqui, como em qualquer parte do mundo, o acontecimento é sempre similar: grito, repetido várias vezes ou não, reacções de espanto colectivas, pesquisa visual pelo culpado de tal acto, braços e mãos a apontarem na direcção da fuga, um ou outro espectador a avisarem das suas lesões físicas que os impedem da perseguição, e assim, sem um qualquer herói ocasional, cada vez mais raros nos tempos que correm, as coisas ficam-se por aí. Mas não ficaram.

Nando decidiu correr na direcção da loira, vá lá saber-se porquê. O seu corpo iniciou o movimento, sem o seu cérebro ter tido tempo de analisar consequências ou efeitos secundários de tal decisão. Não decidiu, reagiu, e a partir daí teremos de imaginar tudo na típica câmara lenta dos acontecimentos trágicos: O olhar belicoso da idosa para ele, os aplausos das crianças, as expressões invejosas dos outros machos alfa e até a banda sonora inadvertida, produzida por um automóvel recentemente parado, para observar a confusão. Filme parecia ser, e ainda mais filme ficou, quando Nando, sem perceber sequer como, se chegou rapidamente à sua peugada. Rapidamente demais, passou por ela, agarrou-se-lhe ao braço esquerdo, lançou rasteira à sua perna direita e num gesto jiu-jitsuano, levou-a ao chão. Nando, o carteirista, morria instantaneamente ali, naquela curva do passeio e nascia, por geração espontânea, Nando, o ídolo.

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