A famosa polémica do carteirista (última parte)

por Pedro Saavedra,    3 Novembro, 2021
A famosa polémica do carteirista (última parte)
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Nando, o carteirista, tinha apanhado, não uma loiraça estrangeira, mas Anacleto Solar, o Solas como era conhecido no ofício. Nando tinha cometido o maior crime de um carteirista de carreira. Nando tinha apanhado um colega e com isso tinha assinado o fim da sua carreira. Nando sabia que não podia sequer entrar de novo no bairro, quanto mais voltar a casa, por isso os dados estavam lançados para que o antigo Nando morresse ali mesmo e que o novo Nando ali visse a luz pela primeira vez. Encandeado pela luz da câmara, engoliu em seco antes da primeira resposta ao repórter que, acabado de chegar ao local do crime, aceitou a sugestão dos transeuntes e foi direito ao herói apontado; O rapaz que está ali ao lado do carro da patrulha, o de fato e gravata. Ali estava ele, o pobre rapaz que tinha tido o heroísmo de decapitar o gang de carteiristas mais perigoso da cidade. Responsável pela maioria dos assaltos a turistas, o grupo criminoso era responsável pelo clima de insegurança que as forças policiais tentavam resolver já há algum tempo. E agora, aquele pobre rapaz tinha resolvido tudo isso. O Solas não tinha tido tempo sequer de perceber o que estava a acontecer e, combalido pela queda, ainda dava por sorte não se ter ido naquele momento e, para gáudio de Nando, sofrera no embate um apagamento de memória imediata que não lhe dava lugar a saber o quê ou quem o derrubava.

Nando estava safo, mas não sabia, e por isso à pergunta elogiosa do repórter respondeu com a maior sinceridade do mundo; O que me moveu? Apenas a vontade de ajudar. Qualquer um faria o mesmo no meu lugar. Mas não teve medo? Medo? O medo só acontece quando sabemos antecipadamente do perigo, aqui limitei-me a reagir. E não o surpreendeu a rapariga ser um rapaz? Não. A única coisa que me surpreendeu foi a reacção das pessoas perante este acaso. Mas o senhor agora é um herói. Acha? Só cumpri a minha obrigação, se isso faz de mim um herói, também o senhor e todas as pessoas cumpridoras são heróis. As palavras que iniciaram a mudança da vida de Nando pareciam naquele momento, o momento em que realmente foram proferidas, as mais simples palavras que um pobre rapaz do bairro poderia dizer. Mal sabia ainda ele que repetidas milhares, até milhões, de vezes nos noticiários e redes, primeiro do país e depois de todo o mundo o fariam transformar-se numa espécie de super-homem caído das estrelas para nos salvar.

Assim, os primeiros dias foram maravilhosos. Tantas eram as solicitações para falar aqui e ali, que até a estadia lhe era garantida para estar aqui e ali a horas, que o Nando ídolo não tinha tempo para pensar no que realmente estava a acontecer. Entrou, de cara erguida, em estúdio após estúdio, com o seu novo figurino de pessoa a sério, a sua nova expressão de quem tem opinião sobre tudo e até novo número de telemóvel no bolso. Assim estava a entrar no estúdio do especial televisivo que se tinha lançado para falar da insegurança nas grandes cidades. Entrou pelo parque de estacionamento, conduzido pelo motorista da estação de televisão, foi encaminhado para o elevador que o conduziria ao piso certo, quando o mesmo parou a meio de dois pisos. Assustado, Nando carregou no botão de alarme. Do outro lado uma voz respondeu; Sim? O elevador parou, façam alguma coisa! Nando? Perguntou a voz do outro lado do intercomunicador; Nando, és tu? Desculpe, o senhor conhece-me? Nando, sou eu, o Primo. Primo? Não conheço nenhum Primo. Nando, como assim não conheces o teu primo? Esqueceste que eu sou segurança aqui na estação há mais de cinco anos e que já te abri a porta da garagem várias vezes? Não sei do que está a falar. O elevador voltou ao seu lento movimento ascendente e a voz não disse mais nada. Nando entrou no estúdio com muito menos confiança do que estava habituado a ter nos últimos dias e sem que ninguém reparasse não parava de olhar para, cara a cara, tentar reconhecer alguém que conhecesse Nando, o carteirista. Ninguém lhe dirigiu palavra inimiga e voltou ao hotel como tinha saído. Tinha saído e voltado a entrar como Nando, o ídolo. Mas no dia seguinte não seria mais nem o Nando, o ídolo, nem Nando, o carteirista. Porque como a notícia do dia era o seu misterioso desparecimento, passou a ser, para sempre, Nando, o desaparecido. A quem perguntasse no bairro o que lhe tinha acontecido, apenas lhes ouviria uma breve interjeição de desinteresse e um olhar de comum despeito.

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