A fiscalização às salamandras
A obra “A Guerra Das Salamandras” trata-se de um dos grandes livros de culto da literatura do século XX. Escrita pelo escritor checo Karel Čapek, também conhecido por ter sido um forte opositor da ascensão do Nazismo na Alemanha e que morrera precocemente em 1938, a obra descreve um mundo onde surge uma nova espécie de salamandras gigantes (ou tritões como são inicialmente designados) que possuem habilidades e uma capacidade cognitiva muito superior às outras espécies animais, sendo até comparáveis às habilidades dos humanos. São inicialmente descobertas pelo capitão holandês Van Toch, tornando-se num fenómeno a nível mundial por variadíssimas razões. As salamandras inicialmente trazem pérolas de grande tamanho ao capitão manifestando uma empatia diferente da dos anfíbios ou répteis comuns, e rapidamente, dada as suas qualidades, acabam por ser encaradas como objectos de estudo científico, alvo de atracção turística em zoos, acabando até mesmo por serem utilizadas em negócios de tráfico com o fim de servirem como mão de obra em determinados sectores laborais.
O ser humano vê uma vantagem enorme em conviver e adaptar as salamandras ao seu mundo. Uma das personagens do livro, que promove a integração das salamandras na caça às pérolas e também como trabalhadoras noutros sectores, chega mesmo a fundar o Salamander Syndicate, como forma de evitar qualquer tipo de divergência com os seres humanos no início da integração destes seres na sociedade. Ao longo da história existe sempre a discussão se as salamandras terão alma como os humanos, pois são sempre consideradas uma espécie animal como tantas outras. Acaba por existir uma quase simbiose entre ambos, promovendo uma enorme colaboração com o objetivo de melhorar a vida no mundo. As salamandras tornam-se numa espécie de operários do mar, e a certa começam a ser associadas a determinadas ideologias políticas, chegando a haver vários slogans que as associam a ideologias revolucionárias, incitando à união contra a opressão dos caçadores e daqueles que se aproveitam das suas habilidades. De algum modo, as salamandras acabam por ser conotadas à classe trabalhadora, acabando por deixar o ser humano sempre como uma espécie superior dadas as restrições que lhes vão impondo ao longo da narrativa. Daí que a certa altura ocorram confrontos sangrentos entre ambos e a uma enorme revolta por parte das salamandras, conduzindo à guerra que intitula esta obra.
Apesar desta ser uma história de ficção científica, inspirada na situação política da Europa nos anos 30, conseguiu surpreendentemente tornar-se numa alusão aos tempos que correm, independentemente de até agora não terem sido descobertos outros seres com capacidades cognitivas semelhantes às do ser humano. No entanto, dentro da nossa grande família humana muitos de nós são tratados ou encarados como seres semelhantes às célebres salamandras que Karel Čapek nos introduz neste seu livro. Tal como nesta obra, existem salamandras mais aptas para certas tarefas do que outras, mas isso não significa que hajam salamandras melhores ou piores que outras. A verdade é que muitas salamandras bem aptas acabaram por ficar sem o seu emprego durante o período em que houve um isolamento que teve que ser necessário e que afectou todos por igual, mas que acabou por afectar mais do que outros. Aquelas que mantiveram o seu emprego ou a sua actividade laboral enfrentam, neste momento, uma fiscalização que tem de ser feita de forma a evitar uma catástrofe de saúde pública que já se começa a sentir. A utilização obrigatória de máscara, a medição diária da temperatura corporal, picar o cartão à entrada e à saída de forma a haver um maior controlo do fluxo de pessoas, fazer rastreios periódicos de forma a evitar novos casos de infecção, ou ainda haver horários de trabalho desfasados, são medidas de controlo que fazem parte em qualquer que seja o sector laboral e que visam reduzir a probabilidade de nos casos de infecção. Outra coisa, que alguns pretendem aplicar aproveitando-se desta situação delicada, é tomar um controlo exagerado daquilo que fazemos, promovendo uma fiscalização massiva mas que aparentemente parece ser válida apenas para a “classe das salamandras”. Não deixa de ser curioso que haja quebra de protocolos para outros infectados que possuem um maior estatuto como por exemplo grandes atletas de alta competição, pessoas que exercem altos cargos ou até mesmo vedetas de bolsos cheios que, claro está, não são considerados propriamente salamandras como os restantes seres que por aí andam.
Nem todas as salamandras são bem-comportadas ou têm uma noção da gravidade da situação actual, e a fiscalização ajuda a reduzir comportamentos que devem ser evitados ao máximo. Contudo, a fiscalização às salamandras tornou-se numa moda que aparentemente pretende ir para além do que deve ser fiscalizado, esquecendo que existem coisas que são muito mais complicadas de se fiscalizar às quais se deveria prestar um pouco de mais atenção. As doenças do foro mental, por exemplo, são também um vírus que tem atacado as salamandras e esse sim é bem mais difícil de se detectar. A ansiedade manifesta-se em muitos de nós de uma forma intensa e fora de controlo, algo que se tem verificado dado o aumento das consultas de psiquiatria. A situação actual não ajuda de forma nenhuma a atenuar esta problemática, bem pelo contrário. Existe, mais do que nunca, campanhas de sensibilização para esta pandemia silenciosa que afecta cada vez mais salamandras e que se tornou também num grave problema em qualquer que seja o sector laboral.
Numa altura em que a ciência faz esforços hercúleos ao procurar soluções para salvar a humanidade de uma das maiores crises de saúde pública de sempre a nível mundial, há quem a despreze e trate quem lida diariamente com a ciência como um grupo de salamandras que não sabe do que fala, encarando os factos que estas demonstram apenas para aquilo que mais lhe convém. Ao invés de se ouvir os especialistas e aplicarem-se medidas, há quem ache que o melhor é não aplicar medidas nenhumas ou então aplica-las impetuosamente, seguindo argumentos superficiais e pouco articulados, deixando a opinião dos especialistas para depois. O vírus acaba por nos afectar a todos por igual, apesar de existirem outros seres que possam pagar uma elevada quantia por “cocktails” de anticorpos num eventual tratamento caso fiquem infectados, o que não significa que as salamandras também possam usufruir desses mesmos recursos tão facilmente.
O mundo tornou-se num lugar estranho onde acabamos todos por ser salamandras, descendo a uma condição de réptil que consegue ser mais rastejante que a dos restantes répteis ou anfíbios que conhecemos. As pérolas que as salamandras conseguem trazer serão sempre mais importantes do que a condição humana que estas supostamente deveriam ter. Tal como os humanos, as salamandras de Karel Čapek sabem ler, falar várias línguas, ter pensamento crítico e habilidades que as tornam também em seres racionais. Conseguem até, nesse aspecto ser superiores ao ser humano como a história acaba também por demonstrar. No fim de contas, mais do que estarmos entregues ao bicho invisível que se propaga a uma velocidade estonteante, estamos entregues a um grupo reduzido que é nada mais do que uma bicharada humana obcecada com a fiscalização que é massiva apenas para alguns. E o que precisávamos mesmo era que um batalhão das salamandras de Karel Čapek nos viesse salvar de tudo isto.