A força de “Titane”, de Julia Ducournau: além género, além humano
A Wikipedia apresenta Titane da seguinte forma: “(…) a body horror thriller film written and directed by Julia Ducournau. It stars Agathe Rousselle as a female serial killer who becomes pregnant after having sex with a car.”; por outro lado, no Letterboxd: “Following a series of unexplained crimes, a former firefighter is reunited with his son who has been missing for 10 years.”. Poderão estar ambos correctos — e se eu próprio levar a cabo uma tentativa, será algo como “uma meditação sensual, nalguns momentos grotesca, sobre género e transformação (que poderá ou não envolver sexo com carros)”. Definir Titane é difícil, e provavelmente um exercício fútil. Mas já acarretou a Palme d’Or, em Cannes, e não deixará ninguém indiferente.
Ducournau é, em simultâneo, realizadora e argumentista do filme, e já a conhecemos de Raw (2016), sobre uma jovem, educada no vegetarianismo, que rapidamente degenera em tendências canibais — este filme não foi distribuído em Portugal. Lido assim, talvez pareça uma premissa absurda e gratuita, mas foi um sólido estudo da personagem principal, donde se entreviam questões de identidade e um fascínio, temperado por devaneios gore, pela carne e pelo corpo. Nesse sentido, Titane oferece uma continuidade temática, porventura mais abstracta e sensorial.
Logo após a primeira cena do filme, existe uma longa sequência, num só take, que percorre uma espécie de salão automóvel pejado de dançarinas; é um artifício erótico comum, e não há nada que nos surpreenda nesta justaposição, mas podemos tomá-la como simbólica do que ainda virá: uma comunhão entre o Homem (ou a Mulher?) e a máquina, ou o metal. Esses primeiros momentos são um deleite estético, com os gestos da câmera e a fotografia, os movimentos dos corpos, e a excelente música de Jim Williams, que se situa entre o industrial e o operático. Declaram-se motivos que acompanharão todo o filme; e, logo depois, vem a violência.
Quando o primeiro acto desbrava por aí fora, estabelecendo Alexia, vilã/heroína, como uma assassina em série, Titane pisa caminhos que não são estranhos a Kill Bill, por exemplo, e nessa fase Ducournau explora o grafismo do corpo, a sua plasticidade; já os havia explorado nos seus anteriores trabalhos, em situações onde a emoção e o intelecto dão lugar à reacção primal, quer estejamos atraídos, seduzidos, ou incomodados por repulsa quanto ao seu conteúdo. É, também, desenvolvimento de personagem: a relação familiar tensa de Alexia, ou a sua intensa expressão sexual não-canónica, caracterizam-se nestas sequências — e elas são, digamos, antes poéticas que subordinadas a qualquer lógica narrativa.
Julia Ducournau fala, em várias entrevistas alusivas a este e outros trabalhos, dum sentido de liberdade que sente e procura, que não advém apenas de fazer filmes “de género” – de terror, ou digamos corporais, na linha de John Carpenter ou de Cronenberg (e a propósito, todos falam de Crash como uma óbvia influência, mas não se menciona o autor J. G. Ballard, literato pensador donde se extrai, entre outros, o símbolo que da sexualidade automóvel) – usa referências e citações de outros filmes, outras obras; algumas serão intencionais, mas outras não. É uma liberdade, então, que lhe permite fazer uso da narrativa de forma leviana, como se admitindo que não é aí que pretende estabelecer a sua mensagem — há um outro discurso que suplanta a obra, que está presente em tudo.
Pois a partir de um dado momento central na história, o filme roda sobre o seu eixo e parece um outro, transformando Alexia, e transformando-se ele próprio também. Subverte a expectativa de uma narrativa linear, norteada pela resolução da acção, e doravante estabelece uma meditação sobre género, sobre fluidez, sobre aquilo a que chamamos identidade, e amor. Tudo em Titane tem o propósito de servir essas ideias: os conflitos, como são as buscas policiais, a iminente denúncia da farsa plantada no segundo acto, a própria gravidez de Alexia, são episódios simbólicos, poéticos num certo sentido, que contribuem para uma visão da obra que Ducournau diz provir das épicas mitologias gregas. São imagens masculinas e femininas que actuam, e que contrastam entre si; papéis e tensões de progenitor e descendente, gestos, como uma dança, cuja amplitude almeja a grandiosidade.
Ducournau tem aqui um exercício ambicioso; é um objecto único, cru nas arestas narrativas mas uniforme na sua estética sensorial, que subverte a habitual linguagem do cinema e nos convida (sequestra!) a um mundo de lógica própria. Foi a primeira mulher a ganhar a Palme d’Or em vários anos; é um pormenor interessante, claro, mas que é ofuscado pelo ímpeto da obra, que aponta a outros problemas, incluíndo-o. Titane, nos próximos dias, fará correr muita tinta. Negra, espessa e viscosa, como o óleo automóvel; como o sangue de Alexia, pós-humano. A atenção que lhe damos é merecida.