A gruta de Belém
Porque é que em tantos presépios e pinturas (como na de Giorgione, na imagem) se representa o Menino Jesus a nascer numa gruta? Não há qualquer menção de uma gruta no Novo Testamento.
A gruta de Belém é o caso curioso de um elemento fixo no imaginário cristão que tem a sua origem na escritura cristã não-canónica. Em concreto, vem da adaptação latina de um texto grego a que se dá o nome de «Proto-Evangelho de Tiago», adaptação latina essa hoje conhecida como o «Evangelho de Pseudo-Mateus».
A história aí contada é que José e Maria (e o burro) chegam a Belém, onde José diz imediatamente a Maria para entrar numa gruta (não há o tema da estalagem lotada de outras tradições).
Era uma gruta onde sempre reinara a escuridão, mas quando Maria entrou toda a gruta começou a brilhar com sobrenatural esplendor, quase como se o sol estivesse lá dentro («quasi sol inesset»).
Esta luz não diminuía, nem de dia, nem de noite, até que Maria deu à luz o seu filho, o qual saiu do ventre e logo se colocou de pé. À sua volta, anjos cantaram «Glória a Deus nas alturas e na terra paz aos homens de boa vontade» (aqui não há maneira de fugir ao genitivo «bonae voluntatis», problema a que dediquei outro texto).
José olha para Maria e para o Menino já nascido e tem a ideia curiosa de ir chamar uma parteira. Poder-se-ia pensar que, depois de o parto ter acontecido e de estar tudo bem com a mãe e com a criança, já não seria necessária a intervenção da parteira – mas a intenção do evangelista é outra.
A parteira Raquel fica parada à entrada da gruta, pois a luminosidade encandeante não a deixa entrar. Mas Maria dá instrução à parteira para se aproximar e logo Raquel insere o dedo para ver se está tudo bem e exclama «Meu Deus! Nunca se viu coisa assim! Uma virgem deu à luz e permaneceu virgem depois do parto!»
Outra parteira chamada Salomé, decerto uma metediça, que estava ali a espiar o que se passava, ouviu as palavras de Raquel e declarou logo que não acreditava em tal coisa. «A não ser que eu a examine, não acreditarei».
Mais uma vez Maria sujeita-se ao exame ginecológico e, desta vez, a parteira incrédula tira a mão e desata a chorar de dor, pois a mão ficou toda queimada. «Eis que fiquei desgraçada na minha descrença, pois ousei pôr à prova a virgem, que pariu a luz (em latim, «quae peperit lumen»), e permaneceu virgem depois do parto!»
Aparece então um jovem «esplêndido» que lhe diz para tocar com a mão no Menino, «pois ele é o salvador de todos os que tiverem esperança nele». A parteira obedece e a mão fica curada.
Nisto, chegam pastores para adorar o menino – ao mesmo tempo que uma estrela gigantesca está a brilhar de dia e de noite por cima da gruta (este evangelista mistura, como se vê, os pastores de Lucas com a estrela de Mateus).
No terceiro dia depois do nascimento, Maria sai da gruta e entra num estábulo, onde coloca o Menino na manjedoura. Logo um boi e um burro que ali estavam se ajoelham para adorar o Menino, cumprindo assim – afirma este evangelista confuso e ignorante – a profecia de Habacuc, que teria dito «in medio duorum animalium innotesceris», ou seja, «no meio de dois animais serás conhecido».
Na realidade, não é nada disso que diz a passagem de Habacuc (3:2) no Antigo Testamento. Mas, como em relação a tudo na narrativa da Natividade de Jesus, também aqui podemos dizer «sì non è vero, è ben trovato».