A guerra na Ucrânia não vai acontecer
Vivemos história. Em pleno Século XXI voltámos ao século XX. Depois de uma pandemia, como a gripe espanhola, vivemos o início dos loucos anos 20, com tensões geopolíticas à mistura. No momento em que as tropas russas cruzaram a fronteira ucraniana, a história voltou a escrever-se e nós, uma geração crescida ao telemóvel, estivemos na linha da frente a assistir.
No dia da invasão russa, acordámos colados ao ecrã de onde imagens diretas de Kiev saíam para dentro das nossas casas. Repórteres vestiam coletes anti bala. Bombas explodiam no horizonte. Tanques rolavam. Armas disparavam. Os arrepios subiam, enquanto a ansiedade tomava conta da nossa cabeça a pensar “E se fossemos nós que estivéssemos ali?”.
Antes de tudo isto, houve alertas. O Secretária Geral da NATO disse que a Rússia estaria a preparar uma invasão de larga escala. Joe Biden confirmou as informações. Porém, os analistas (e todos nós) acharam que não passava de alarido. Ninguém acreditou. Contudo, estes últimos dias demonstraram: nós estamos a viver história.
Nunca pensámos, na nossa geração, assistir a factos que só conhecemos dos livros. A conceção do “Fim da história”, de Fukuyama, reinava na nossa vida. Nascemos em paz, o fascismo era algo sem expressão na Europa e a nossa maior preocupação era estudar. Guerra na Europa era uma coisa atroz, quase incompreensível e para a qual olhávamos (e ainda olho) com desdém, principalmente por causa da superioridade moral e intelectual dos nossos tempos. Entendíamos que já tínhamos aprendido que os horrores da guerra não iriam voltar a acontecer, principalmente quando atingimos uma sociedade tão moderna, democrática e liberal. Porém, acima de tudo, como é que na sociedade da informação seria possível uma guerra?
No dia do ataque à Ucrânia, recordei-me de Jean Baudrillard, filósofo francês (que inspirou a trilogia Mátrix) e do seu livro “A Guerra do Golfo não aconteceu”. Este livro, testemunha exatamente o que é assistir a uma guerra na sociedade contemporânea, onde tudo o que se passa no campo de batalha é transmitido em direto.
Jean Baudrillard argumenta1 que a guerra que vemos nos ecrãs não é senão uma representação dela mesma. Isto é, assistimos à guerra como se fosse um filme/simulação, porque só temos acesso àquilo que nos é mostrado pelas câmaras dos repórteres. Assim, para a audiência, a guerra não é a que acontece no campo de batalha, mas a que se vê no ecrã.
A cada partilha, a cada vídeo, a guerra entra para dentro do nosso quarto. Somos bombardeados por imagens dos mísseis russos a cair sobre a Ucrânia, pelos vídeos de Zelensky que ficarão para a história, ou pelos tweets em direto a pedir às pessoas para se refugiarem no metro de Kyiv. Acordamos de manhã a ir ver as notícias para saber se Kiev foi tomada ou não, numa ânsia de perceber os desenvolvimentos da guerra, quase como se de uma série se tratasse.
O meu ponto final é que, no século XXI, não sabemos viver em guerra. Tomámos como adquirida a paz e agimos como se a guerra fosse coisa do passado. Além disso, não sabemos combater uma guerra, na sociedade de informação. Ficamos agarrados aos ecrãs, com as cenas a desenrolar-se sem que isso tenha consequências práticas na nossa vida, para além da ansiedade que nos toma. Viveu-se um período demasiado confortável, onde na Europa a guerra não fazia parte da equação. Para nossa tristeza, uma linha na história foi ultrapassada. Agora temos que aprender a viver uma possível nova guerra, exatamente nesta sociedade de informação, na qual tudo se passa em direto, às vezes com pouco contexto, a uma velocidade galopante.
Escrevo este artigo sem saber também como lidar com a situação, porque eu próprio não consigo deixar de estar sempre atento às notícias. Mas o que peço é reflexão. É urgente reconhecer a história e perceber que o presente é a história do futuro. É urgente reconhecer que somos os maiores atores da história mundial e que não podemos ser só espetadores. Temos de sair desta simulação e passar para a frente da batalha: nas conversas, nas redes sociais, na nossa intervenção como cidadãos, e assumir parte ativa neste conflito. Assim, espero um dia dizer que a guerra na Ucrânia não aconteceu, porque nós estivemos à altura e não falhámos como o fizemos no momento em que o primeiro tanque russo cruzou a fronteira ucraniana.
Por fim, lanço um repto. A guerra nunca muda, a guerra é a coisa mais horrível que a humanidade alguma vez criou, a guerra é uma coisa doente. Nunca tomem a paz como garantida. Façamos história e garantamos que tal não volta a acontecer.
1 Também argumenta que no caso da Guerra do Golfo o equilíbrio de forças era tão desigual que era injusto chamar uma guerra ao que se passava.