A hipermodernidade de Gilles Lipovetsky

por Lucas Brandão,    20 Agosto, 2020
A hipermodernidade de Gilles Lipovetsky
Gilles Lipovetsky / Fotografia de Fronteiras do Pensamento
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Gilles Lipovetsky nasceu a 24 de setembro de 1944 em Millau, pequena vila no sul de França. Estudou Filosofia na Universidade de Grenoble, onde passou a dar aulas, tendo feito parte das célebres contestações estudantis de Paris no ano de 1968. Os motivos destas contestações, centradas no sistema educativo vigente, foram sempre uma questão premente no seu pensamento daí em diante. Considerava esse modelo nocivo por produzir indivíduos alineados com personalidades frágeis, propensas à desordem emocional tendo em conta a busca descontrolada pelos prazeres da vida e pelas gratificações imediatas. A sua carreira académica ganhou cada vez mais repercussão, em especial por via da sua literatura, que lhe permitiu, já no século XXI, usufruir de um estatuto e de um prestígio que o catapultou da comunidade científica para um público mais alargado.

À imagem de muitos outros filósofos e pensadores da sua geração, o francês cresceu numa escola fortemente marxista, que desejava engolir a sociedade, para lá da sua transformação. Porém, seriam só os primeiros passos, dado que se tornou recetivo ao capitalismo, chegando a considerá-lo como o único modelo económico aceitável na atualidade. Aliás, assumiu-o como a grande força de revolução, tendo em conta que abriu portas à criação de fontes de prazer e de novas necessidades individuais e coletivas, dando origem a uma renovação dos padrões de vida de cada um. Foi uma reflexão que foi fazendo entre as décadas de 60 e de 70 no século XX, após se encontrar com a corrente pós-modernista já nos anos 80 e com o palco onde se tornou, efetivamente, célebre: o hipermodernismo. Aqui, chega-se a uma fase da sociedade em que se assiste a uma inversão da modernidade, na qual a função de um objeto tem, como seu ponto de referência, a forma do objeto ao invés da função. O objeto acaba, assim, por ser substituído pelos seus atributos. É um plano social que é trazido pelo crescimento desenfreado da tecnologia, procurando a sua convergência com a biologia, com a informação e com a matéria.

A sua validação encontra-se no ênfase atribuído ao valor da tecnologia que é criada, de forma a ultrapassar obstáculos naturais, abrindo as portas para que o passado possa ser entendido de maneira flexível e associado aos atributos de cada objeto. A separação gritante entre o passado e o presente é assente tendo em conta que o passado orientava os atributos e as funções de um objeto em torno deste e que, no presente, os objetos somente existem por via da importância e da utilidade dos seus atributos nesta hipermodernidade. Em 1983, data de “A Era do Vazio”, Lipovetsky analisava a sociedade como profundamente pós-moderna, assente num individualismo profundo e na dissolução de uma política participativa e autenticamente democrática.

É uma intuição que, depois de se revelar acertada nos anos seguintes, tornou célebre esta sua obra, dado que era um confronto com as ideias preconizadas pelos pensadores de então, com um olhar mais amplo para as manifestações coletivas sociais. De igual modo, foi um choque, para os demais pensadores sociais, que Lipovetsky viesse a público defender a sociedade de consumo, algo que, para eles, se tratava de algo com potencialidades e consequências barbáricas. Foi somente em 1991 que, considerando a pós-modernidade obsoleta, apresentou a hipermodernidade, dado o crescimento das tecnologias e a emergência dos mercados económicos e de uma cultura cada vez mais global.

Este período entre 1983 e 1991 preparou a nova era da hipermodernidade, tendo estudado a fundo os conceitos da globalização, do consumismo, da cultura moderna, dos mercados, das modas, dos media e da própria modernidade, à luz do já mencionado individualismo. Este conceito, no entendimento do pensador, tratava-se do desejo de quebrar com o passado e de olhar para o futuro, com o sentido dos prazeres individuais e singulares. No ano de 1987, ano de publicação de “O Império do Efémero”, abordou o mundo da moda como o reflexo do individualismo e do hiperconsumismo, assim como o próprio desejo de uma eterna juventude e de um sentido de presente perene. Já nos anos 90, chega, em 1992, “O Crepúsculo do Dever”, em que o sentido de um mundo secular só se poderia concretizar no sentido em que o propósito de Deus seria o de definir e de proteger as liberdades individuais. Cinco anos depois, o movimento da libertação das mulheres e o feminismo são discutidos em “A Terceira Mulher”, assinalando que o hiperconsumismo havia influenciado esta emancipação, tendo em conta serem as mulheres as maiores clientes dos bens de luxo, libertas já da ideia do “segundo sexo” cunhada pela filósofa Simone du Beauvoir.

Chegados ao século XXI, em 2002, Lipovetsky redigiu “Metamorfoses da Cultura Liberal”, em que estuda os paradoxos das democracias hipermodernas, perante os confrontos entre a regionalização e a globalização. Para além disso, apresenta a ideia de que a sociedade e a comunidade são ambas abertas e fechadas, tendo em conta que, mesmo muito centradas no individualismo, se tornam interdependentes. Um ano depois, “O Luxo Eterno” analisa o conceito do luxo pela história do ser humano e, três anos depois, em 2006, aprofunda a multiplicação e a globalização das grandes marcas de moda e de bens de luxo em “A Felicidade Paradoxal: Ensaio sobre a Sociedade do Hiperconsumismo”, apontando-a como o grande fundamento do hiperconsumismo. É nesta obra em que apresenta o conceito de homo consumericus, sustentado na noção de que a nova espécie humana se torna profundamente centrada no consumo, vivendo dele e para ele.

No mesmo ano, escreve e publica “A Sociedade da Deceção”, em que o conceito da deceção é examinado à luz da teoria psicanalítica do seu compatriota Jacques Lacan, em que o desejo cria um vácuo que, por nunca poder ser suprido, gerasse essa sensação de deceção. Em 2007, “O Ecrã Global” apresenta uma segunda revolução moderna, em que é decretado o fim do pós-modernismo, dado que os paradoxos da sociedades se iam multiplicando, dada a complexidade crescente da vida moderna. Um ano depois, redige “A Cultura-Mundo” com Jean Serroy, também ele pensador e que se tornaria num dos seus colaboradores mais próximos na sua literatura, tendo-o acompanhado daí em diante.

Esta obra traz a desconstrução da noção de cultura, numa fase em que a sociedade se aprofunda num “tecnocapitalismo” generalizado, municiado por indústrias culturais catapultadas por redes digitais de consumo à escala global. No ano de 2013, estuda o papel da arte, em especial do cinema, no desenvolvimento desta sociedade capitalista em “A Estetização do Mundo”; e, em 2017, escreveria “O Ocidente Mundializado”, com uma vocação de discussão sobre o funcionamento da “cultura-mundo”, repensando as consciências e as existências individuais e coletivas. Mais recentemente, “A Sagração da Autenticidade” (2022) debruça-se, precisamente, sobre a existência ou a ausência dessa caraterística nas suas relações pessoais, profissionais e sociais e sobre o seu potencial transformador do ponto de vista antropológico; três anos antes, “Agradar e Tocar” (2019) faz uma análise sobre o poder da sedução na sociedade contemporânea, movida pela comunicação através da imagem e pelos impulsos consumistas acelerados pelos agentes económicos.

Estes são alguns dos títulos em que o pensador deu asas à sua visão provocadora da vida moderna. Comparou a democracia à moda, sendo cada vez mais efémera, superficial e instável, embora positiva e possível de se articular, mais do que se tratasse de uma sociedade interdependente. O foco da modernidade é a novidade, que rapidamente se torna obsoleto e para o qual se procura um rápido substituto. É esta premissa que leva o francês a anexar à ideia de modernidade o prefixo “hiper”, tendo em conta a voracidade da necessidade por algo novo, em especial numa fase preenchida pela Internet e pelas redes sociais. Algumas das estruturas tradicionais da sociedade acabam por estar diminuídas em impacto, como o da família e o da própria nação. O papel da cultura não resiste a estas novas dinâmicas e torna-se cada vez mais um bem de consumo, consumido pelos turismos ao invés de se tratar de um bem educacional e formativo.

A necessidade do “novo” impele o hiperconsumismo, em que as tendências têm um papel preponderante na criação da necessidade e nos fluxos de consumo que geram frustração nas comunidades mais pobres, que não conseguem acompanhar estas tendências de mercado. Lipovetsky, embora crítico desta nova dinâmica de consumo, não é contra o consumismo, que assume como um meio importante para aumentar o nível médio de vida das populações, embora não o vendo como fim. Definia o capitalismo como algo que poderia ser positivo, embora não tão desenfreado, e com uma vertente mais ecológica e sadia. É aqui que se enquadra o conceito do homo consumericus – inicialmente apresentado em “A Felicidade Paradoxal” -, que o fenómeno do consumo em massa é comparável às dinâmicas de sobrevivência da biologia darwinista, em que só os mais bem preparados e adaptados ao habitat poderiam sobreviver. Os tempos (hiper)modernos – sendo eles título de uma obra escrita em 2004, em que aborda todas estas questões – levantam o surgimento de um tipo de homo cada vez mais imprevisível e insaciável.

Um dos aspetos que também suscita interesse da linha de pensamento de Lipovetsky é a questão do feminismo e o papel das mulheres da sociedade. Embora reconhecendo a importância dos progressos feitos em prol da equidade de direitos e de oportunidades entre homens e mulheres, o francês vem assinalando o caráter vitimista de muito do feminismo vigente – em especial do movimento #metoo. Aquilo que reconhece como o feminismo é o exercício das funções de trabalho, sejam as de empresária, de cirurgiã, de juíza, por ser a manifestação da sua própria vontade e intenção, e não por se tratar de uma “função de mulher”.

Ao olhar de hoje, a sociedade narcísica – ou seja, centrada no eu – é uma concretização que se cumpre na expansão tecnológica, na sua maior acessibilidade e nos usos subsequentes que são dados a esses meios de comunicação. As tradições e os padrões de comportamentos religiosos acabam por ser confrontados com a não-aceitação do indivíduo em relações às suas ideias, já arcaicas e transformadas por um sentido mais global, embora centrado na individualização dos seus modos de vida. Como resposta, propõe uma aceleração da inovação, munindo de recursos aqueles que a podem promover, ou seja, as universidades e os seus laboratórios e investigadores. É na educação que o francês procura um investimento aprofundado, ao nível financeiro, mas também ao nível técnico e intelectual, com um sentido de formação para a inovação, para o acompanhamento das exigências globais, evitando sacralizar o passado e reverenciar o futuro.

A regulação moral conhece, assim, um canal distinto, passando das instituições para os meios tecnológicos, isto dada a escala global da sociedade hipermoderna. As novas necessidades de consumo transformaram profundamente a forma de viver e aquelas que são colocadas de lado levam a manifestações, assumindo o seu modo de vida como algo de insuportável. Por mais que o Estado assegure condições de vida e de trabalho dignas, as necessidades do capitalismo aprofundam essa sensação de mau-estar dos indivíduos. Porém, e como já assinalado, a crítica feita por Lipovetsky sustenta-se no individualismo como o padrão comportamental através do qual uma sociedade vive nos dias de hoje. A própria participação política flutua consoante os padrões de consumo, levando a maior dispersão e a uma maior propensão para a contestação quando esses padrões não são supridos, e a uma maior conformação e aceitação quando as necessidades de consumo são satisfeitas.

Algo que, para Lipovetsky, se torna a grande importância do Estado em relação às populações é o sentido de segurança que lhes é transmitido por essa figura do Estado. Perante uma insegurança generalizada, na ausência de soluções evidentes e distintas para o presente e para o futuro, há um esgotamento da solução democrática, isto é, dos habituais partidos políticos, havendo uma maior descrença. É isso que permite, com as alavancas proporcionadas pela raiva e pelo próprio ódio, que outras forças extremistas possam surgir e causar perturbações no modo de funcionamento democrático da política e da sociedade. A própria globalização é uma fonte de insegurança, suscitando questões sobre a identidade nacional e individual, sobre os novos fluxos migratórios, sobre o ambiente e sobre coisas tão elementares como a saúde ou a alimentação.

Para o francês, o Estado começa a perder a capacidade de dar alternativas exequíveis para responder a estes desafios e a estas inseguranças, proporcionais às aspirações que cada membro da sociedade vai adquirindo. As dinâmicas de consumo aprofundam um individualismo que retira espaço a um Estado social, que é engolido pelos mercados cada vez mais velozes e globais, embora podendo ocultar eventuais desigualdades sociais e económicas. Isso leva a uma sensação de frustração e de injustiça, dado que o “sistema” faz destoar o mérito dos esforços feitos nas dinâmicas de trabalho, o que leva a que a distribuição desse mérito seja feita de forma errada.

Para Lipovetsky, o modelo económico ideal seria uma economia liberal à moda escandinava, vocacionada para a eficiência e para a iniciativa privada, embora com salvaguardas para os trabalhadores e para as classes mais desfavorecidas da sociedade. Uma “flexisegurança”, ou seja, em que a economia é flexível, possibilitando despedimentos por justa causa ou necessidade, mas em que o Estado, para além de prestar a habitual assistência social, forma esses recursos humanos e abre espaço a que as suas competências possam ser reutilizadas e recicladas. Este investimento caminha lado-a-lado com um investimento musculado em educação e em ciência, voltadas para o homo faber – o homem criador, capaz de controlar o seu futuro e o seu meio ambiente a partir do domínio de diversas ferramentas e competências – do futuro, um futuro que se pretende, não só de consumo, mas também de usufruto desse consumo e do seu próprio trabalho. A valorização criativa de cada um permite, não só pensar num futuro mais sustentado e evoluído, mas também na mobilização artística e cultural a mais gente, tornando-a acessível e menos uma fome de luxo do objeto.

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