A história de um homem a sério
O marido de Kamala Harris é um advogado americano de sucesso. É sócio num dos mais influentes escritórios do mundo, a DLA Piper.
Escrevo no presente, mas deveria tê-lo feito no passado. Era associado num dos maiores do mundo. Assim está mais correto pois Doug Emhoff, casado com Kamala desde 2013, anunciou por estes dias que largou tudo para dar apoio à sua mulher e para que o seu trabalho como advogado não lhe provoque qualquer tipo de incómodo.
Num encontro com miúdos, julgo que numa ação de campanha, uma criança de 9 anos perguntou-lhe o que sentiria se a sua mulher ganhasse as eleições e fosse vice-presidente. A criança chama-se Atticus e foi ao encontro do que outros, alunos e professores, lhe tinham perguntado antes – o que pensaria se tivesse de ser o primeiro “segundo cavalheiro” da história dos Estados Unidos?
Isto é, trocando por miúdos, como se sentiria por passar a viver atrás da mulher, por passar a ser a sua sombra, de ser a sua “segunda dama”?
Doug não perdeu a oportunidade: “É muito importante que os homens, e também os meninos pequenos, apoiem as mulheres fortes e maravilhosas que têm na sua vida. Espero que tu também o faças, Atticus”.
A resposta do marido de Kamala é (quase) tão importante como a eleição da sua mulher para a vice-presidência.
Um homem com uma vida de sucesso, no auge da sua carreira, decidiu abdicar em nome da carreira da sua mulher. Em nome do que, nesta altura, é mais importante.
E nessa abdicação fazer pedagogia pela igualdade de género e contra o preconceito de os maridos não poderem estar na sombra das suas mulheres.
Terá sido um dos acontecimentos políticos e civilizacionais do ano. Uma enorme prova de sabedoria e coragem de um homem que espero seja seguido por outros.
Cresci com a frase na cabeça: “Por trás de um grande homem está sempre uma grande mulher”.
Uma frase que parece bonita e respeitadora das mulheres, mas que na verdade foi uma forma ardilosa de legitimar uma organização de poder, nas mais variadas formas, que perpetuava uma desigualdade.
“Por detrás”, “nos bastidores”, “na sombra” – se todos esses requisitos fossem preenchidos as mulheres podiam ser grandes, maravilhosas, inteligentes e geniais.
Cresci com mulheres.
Em muitos casos mulheres que eram substancialmente melhores do que os homens com quem escolheram estar.
Infelizmente não conseguiram fazer-se ouvir por a elas estar reservada a sombra.
Que esse tempo possa ter sido superado.
E que no futuro mais homens, à semelhança de Doug Emhoff possam deixar as suas mulheres brilhar e iluminar o mundo.
O mundo ficaria muito mais completo e seria muito mais justo, equilibrado e plural.