A importância da BD no texto
Durante muito tempo considerou-se a BD como uma literatura para iletrados, um cinema dos pobres, e isto não era apenas a versão popular dos acontecimentos, mas igualmente a posição académica que analisava uma banda-desenhada em termos de escalas de planos como se fosse o storyboard de um filme. No seu livro Understanding Comics, Scott McLoud formalizou uma noção que todos os verdadeiros criadores e apreciadores de BD já conheciam de forma instintiva: a BD não é uma mera cópia ou adaptação estática e infantilizada de outra coisa qualquer; ela é interessante precisamente por ser uma sucessão de desenhos e de palavras acompanhados por um leque específico de símbolos gráficos (balões, quadradinhos, legendas, etc).
No centro do palco, iluminado por um foco, Scott Mcloud segura uma placa dizendo “Imagens estáticas justapostas em sequência deliberada”. Anteriormente, já tinha proposto outras definições de Bd, que a audiência tinha considerado inadequadas. Esta era apenas a última versão:
— Que tal está agora?
— Então e as palavras? — pergunta alguém na plateia.
— Oh, não tem que conter palavras para ser uma BD.
— Não, não. Com essa definição também se pode descrever palavras, não é??
— Hã?
— As letras são imagens estáticas, certo? Quando são compostas numa sequência deliberada, umas a seguir às outras, chamamos-lhes “palavras”.Scott McLoud, Understanding Comics.
Por esta altura convém fazer uma pequena advertência a quem lê este texto: isto não é bem um texto sobre BD. É um texto sobre a natureza visual e narrativa do próprio texto. Não fala de palavras que descrevem sensações visuais ou contam histórias; trata da forma como a porção visível das palavras é, por si só, uma linguagem visual e uma narrativa, não apenas nas situações mais experimentais mas nos textos mais comuns, como o que lêem neste momento.
Na passagem que serve de epígrafe a este ensaio, Scott McLoud tenta definir com algum rigor o que é uma BD. Uma das suas definições pode ser aplicada às palavras escritas: imagens estáticas compostas numa sequência deliberada. Esta é uma ideia curiosa porque não é comum encararmos as palavras como imagens e há mesmo uma antinomia popular entre imagem e texto. Um texto é suposto ser, de alguma forma, o oposto de uma imagem.
Esta separação não é tão absoluta como poderia parecer e desde há muito tempo que a oposição/dualidade entre palavras e imagens é usada de forma expressiva. O poeta grego Símias de Rodes criava poemas onde as palavras formavam imagens que os ilustravam, em vez de se sucederem da esquerda para a direita e de cima para baixo. Um poema sobre um machado assumia a forma de machado e outro, sobre um ovo, parecia um ovo.
O nosso alfabeto romano, tal como o alfabeto grego que Símias usava nas suas composições, é fonográfico: representa sons através de um conjunto de sinais gráficos — as letras. No entanto, estas também são imagens que podem ser manipuladas de forma criativa. Estes objectos híbridos entre o desenho e a literatura foram durante muito tempo raridades, excepções na evolução das linguagens escritas e pictóricas que desvalorizavou e distanciou progressivamente a associação entre imagens e textos.
Segundo Scott McLoud, as imagens foram-se tornando cada vez mais realistas e os textos cada vez mais abstractos. A pintura avançou em direcção a imagens cada vez mais detalhadas e a literatura em direcção a descrições e estruturas cada vez mais distantes da linguagem comum de todos os dias. Mas, no início do século xx, texto e imagem inverteram a marcha e chocaram. Alguns aspectos das suas sintaxes respectivas fundiram-se, dando origem a novos meios de expressão. Um deles é a banda-desenhada, onde as imagens se organizam como palavras sobre a página. Outro é a poesia concreta, onde as palavras se organizam como imagens sobre a página.
Em 1897, na mesma altura em que surgem as primeiras BDs do Yellow Kid, Stéphane Mallarmé publica Un Coup de Dés, um poema onde as palavras de diferentes tamanhos e feitios são colocadas expressivamente sobre o espaço branco da página. O poema deixa de ser a evocação de ritmos de fala para ser uma relação de elementos gráficos sobre o papel. O livro e a tipografia já não são contentores neutros para o som da linguagem falada. Passam a existir coisas na página impressa que não podem ser ditas em voz alta e nunca foram destinadas a isso. Marinetti, num dos seus inúmeros manifestos futuristas, fala de uma nova gramática onde as palavras são libertadas da mera representação da voz humana. As letras devem ser usadas como coisas em si, pelo seu poder icónico, construindo imagens na página ou então como meros sons, explosões, estampidos — onomatopeias.
Nas décadas seguintes, as experiências deste género multiplicaram-se e vulgarizaram-se alcançando todo os géneros de literatura. Guillaume Apolinnaire, escreve poemas que se assemelham a chuva (Il Pleut, 1918) e a cenas de jardim com pombas e fontenários (La Colombe poignardé et le jet d’eau, 1918) no seu livro Calligrammes. O futurista russo Maiakovski escrevia na mesma altura um livro de poesia visual e onomatopaica chamado — ironicamente — “Para ser lido em Voz Alta” . Mais tarde o escritor de ficção científica Alfred Bester escreve livros onde as palavras formam imagens que ilustram percepções exóticas como sinestesia ou telepatia. Ao longo do século xx, letras e imagens misturaram-se em toda a parte, fazendo-nos esquecer a sua separação primordial.
Mas todos estes exemplos são excepções ou experiências que não nos devem fazer esquecer que a própria evolução da escrita, em especial depois da invenção da impressão, sempre tentou encontrar maneiras de representar visualmente ideias cada vez mais complexas. A simples comparação de uma inscrição romana com um livro escrito actualmente mostra-nos que, embora os dois textos usem os mesmos caracteres básicos do alfabeto, no texto mais recente existem inúmeros sinais de pontuação, bem como uma grande variedade de espaços brancos que assinalam diferentes palavras, frases ou parágrafos que não estão presentes no texto romano.
Normalmente, este tipo de sinalização é visto como um auxiliar passivo da criação conceptual do texto, ajudando a construir o seu sentido e não tendo nada a ver com a maneira como o leitor vê o texto. No entanto, os próprios escritores tiram partido do aspecto visual do que escrevem, mesmo que de forma utilitária: por exemplo, um livro lê-se mais depressa se seus os diálogos e narrações estiverem assinalados claramente. No começo deste artigo, sabemos que estamos a ler um diálogo porque temos uma série de travessões que, tal como os balões de uma BD, nos indicam a presença do discurso directo.
Alguns autores tiram partido deste tipo de convenções para manipular o tempo de leitura, acelerando-o ou dilatando-o. O capítulo final do Ulisses de Joyce não tem parágrafos ou pontuação durante cerca de cinquenta páginas. As suas páginas são rectângulos uniformes de texto onde apenas se destaca o pronome pessoal ‘I’ (o ‘eu’ inglês), uma das poucas maiúsculas usadas, dando a ideia de um monólogo interior através de uma frase interminável. Nos livros de José Saramago, os diálogos estão escondidos no meio da narrativa, criando a impressão que se fundem com os ambientes e a acção do livro. Um equivalente na BD seriam os balões incompletos de Hugo Pratt, que por serem meras sugestões, fazem com que o texto faça parte do desenho.
Por outro lado, se quisermos descobrir o equivalente a um quadradinho na escrita, o parágrafo é um bom candidato. Scott McLoud diz que a parte mais interessante da banda-desenhada é o espaço branco entre os quadradinhos. Um parágrafo é uma coisa semelhante. Os alunos de Português dizem que é uma mudança de assunto. Ao contrário dos pontos finais que indicam a forma como um texto é lido em voz alta, os parágrafos são ideogramas muito específicos que representam não ideias, mas mudanças de ideias. Um parágrafo torna vísivel uma mudança de ideias através de uma interrupção visível do texto. À primeira vista, poderiamos pensar que um parágrafo é uma porção de texto, mas o que define realmente um parágrafo é um espaço em branco.
Para concluir, uma ou duas coisas: o título deste pequeno ensaio é evidentemente um trocadilho. Este artigo não falou da importância da BD no texto — infelizmente, literatura e banda-desenhada são duas áreas bastante estanques, embora mais no sentido BD-literatura do que no inverso. A verdadeira intenção foi demonstrar que as palavras têm uma vida dupla e podem ser usadas para construir histórias e narrativas mesmo quando não são feitas para serem lidas. Lemos as palavras mas raramente as vemos, o que é uma situação paradoxal mas, como qualquer pessoa interessada em tipografia, acontece sempre que abrimos um livro.
Além do Understanding Comics e da sua continuação Reinventing Comics, ambos escritos, desenhados e protagonizados por Scott McLoud, foram consultados na elaboração deste artigo uma série de textos de designers gráficos, uma profissão onde se olha para as palavras com os olhos semicerrados antes de as ler: A History of Graphic Design de Philip Meggs; Design Writing Research de Abbott Miller e Ellen Lupton; New Typography de Jan Tschichold.
Este artigo apareceu previamente na revista Act.