A importância de pensar sobre a morte
Aos 19 anos, fui diagnosticado com um tumor cerebral. O diagnóstico era favorável — dentro do possível — e tudo correu bem. Fui operado com sucesso e segui em frente com a minha vida. Mas claro que, depois de passar por uma experiência com este impacto, na curva de saída da adolescência e a meio de um curso de Direito, seguir em frente como se nada se passasse tornou-se logicamente impossível. Fui obrigado a refletir sobre a vida, como qualquer pessoa confrontada com a possibilidade da sua morte. As perguntas clichés sobre o propósito da vida, sobre o porquê de fazermos o que fazemos “cá em baixo”, deixaram de ser meras conversas para ter à mesa com amigos ou para alimentar uma certa curiosidade intelectual. Como é lógico, continuo sem saber responder a estas perguntas — mas todo o processo, agora visto com uma distância de quatro anos, deu-me algumas lições importantes.
Comecemos pelo diálogo com a morte. Como referi, a minha situação não era grave. Nunca recebi um diagnóstico terminal, nunca me foi dito que esse cenário estava em cima da mesa. Ainda assim, era um tumor no cérebro. Para um rapaz de 19 anos cujas principais preocupações alternavam entre os planos de festas para a semana seguinte ou passar a meia dúzia de cadeiras na Faculdade, o choque é óbvio. Voltando a clichés, quase todos estamos convencidos que somos imortais quando somos novos. Apenas alguns de nós têm direito a um aviso — ou a uma confirmação – de que não somos. Felizmente, fiquei pelo aviso. Mas apenas o aviso foi suficiente para despertar um diálogo com a ideia da morte. Comecei a prestar mais atenção ao que me rodeava, aos espaços. Nunca tinha pensado muito nos espaços, tanto nos humanos como naturais. Fui obrigado a olhar para estes espaços e a pensar que, um dia, nunca mais ia ter direito a vê-los. O sentimento de olhar para o que quer que nos rodeie e pensar, de forma angustiada — “não quero deixar de ter isto” — não é frequente na vida das pessoas. Nem podia ser sempre assim: imaginemos uma sociedade de angustiados que vive constantemente com medo de deixar de ver as árvores e o céu azul. Ainda assim, quando estes pensamentos nos detêm, é difícil não pensar que “estes tipos são todos parvos” quando ouvimos alguém a chatear-se com as coisas mais triviais, desde um atraso a uma má nota. No fundo, passamos a dominar a arte de relativizar, de olhar para as coisas com alguma distância e não as levar de forma demasiado séria. O que antes era o fim do mundo passa a ser um mero percalço, normalmente motivo de piada.
Contudo, não considero que seja obrigatório confrontar a morte para abraçar estes pensamentos. Pelo caminho, já conheci umas quantas pessoas que pensam assim (muitas vezes sem as próprias o saberem) e que nunca tiveram de ter médicos a brincar com o seu cérebro na mesa de operações. Estas são pessoas que gostam da vida, mas não a levam demasiado a sério. Todas tiveram, de uma forma ou outra, oportunidade de pensar sobre a vida, tal como eu tive. Riem-se das suas desgraças, ignoram provocações dos outros e é raro terem discussões que as tiram do sério. Olham para o abismo, dão uma bela gargalhada e pensam no que vão fazer para o jantar.
Agora, está na altura de pôr um travão na romantização do tipo despreocupado que confrontou a morte e agora não leva nada a sério. Logicamente que há coisas que devemos levar a sério. Logicamente que há pessoas que não podem chegar atrasadas ao seu trabalho, sob pena de o perderem e de não se conseguirem alimentar; ou pessoas que não podem ter uma má nota, sob pena de perderem a sua bolsa de estudo. É importante lembrar que não levar a vida a sério não implica perder a empatia — pelo contrário, os dois podem (e devem) andar de mãos dadas. Como sabemos, só é possível pensar sobre a importância e o absurdismo da vida se não vivermos num ciclo constante de tentar apenas sobreviver. Ao longo dos últimos quatro anos, apenas pude refletir sobre as lições de ter tido um tumor porque não tive de me preocupar demasiado com todas as outras coisas; porque fintei a morte graças a um acesso privilegiado aos melhores cuidados de saúde. Se a aleatoriedade do nascimento (ou Deus, se forem crentes) não me tivesse posto onde pôs, o desfecho poderia ter sido outro. Tudo isto nos leva a uma questão simples, talvez até ingénua: porque é que não temos todos a abertura de refletir despreocupadamente sobre a vida e a morte? Apesar de partilhamos o mesmo início e fim de vida, o interregno é profundamente desigual.
Não pretendo colar a questão de forma paternalista, como quem diz “os mais desfavorecidos não conseguem pensar sobre a vida e só as pessoas privilegiadas é que o fazem, mas todos deviam poder fazê-lo!” Pelo contrário, as pessoas que conheci que mais se levam a sério — e que, por consequência, mais distantes estão de todas as conclusões a que cheguei no meu percurso — vêm dos meios mais elitistas ou educados. Neste caso, a falta de empatia anda de mão dada com uma seriedade artificial, normalmente usada para evitar confrontar o tal abismo. A abertura para refletir sobre a vida e morte não se reduz a uma questão de classe. Logicamente que é difícil sentarmo-nos e pensarmos sobre o sentido da vida se tivermos dois empregos para sustentarmos os nossos filhos. Mas, por outro lado, os homens e mulheres que vivem alienados em empregos de white-collar são muitas vezes os primeiros a fugir desta conversa.
No fundo, não há regras gerais nem equações que se possam aplicar a uma discussão sobre vida e morte. Entre tantas dúvidas e novas questões que surgem deste diálogo, tenho apenas uma certeza: com ou sem tumor no cérebro, todos devemos fazê-lo. E, ainda mais importante, todos devemos ter a abertura para fazê-lo. Pensar sobre o quão absurdo é estarmos aqui num momento e deixarmos de estar aqui no momento seguinte — a ideia de que passamos a nossa vida com um machado sobre a nossa cabeça, seguro por um fio que se pode romper a qualquer momento — é um pensamento desconfortável, mas abre-nos a cabeça (no pun intended).
Os últimos meses de pandemia refletem a nossa incapacidade de lidar com a morte, porque é vista como um tabu, como um tema proibido. Falar da morte é, hoje em dia, um tema dramático, digno de lágrimas e gritos. Mas não tem o de ser assim. Encarar a possibilidade de morrer aos 19 anos foi abrir de olhos para um jovem adulto que vivia indiferente aos espaços e pessoas que o rodeavam. Pensar sobre a morte obriga-nos a constatar o quão insignificantes somos enquanto indivíduos — apenas fazemos sentido enquanto um grupo. Promovamos debates sobre a morte na televisão, nos jornais, nas ruas. Falemos abertamente da morte, mas nunca de forma sombria. Falemos dela como falamos da vida, porque só é possível gostar da vida se soubermos que ela acaba com a morte. Estou convencido que, se conseguirmos falar abertamente sobre este tabu, nos elevaremos enquanto humanos. Passaremos a viver com o desconforto constante de que tudo isto tem um fim, mas apenas assim poderemos aproveitar o que está cá em baixo. Em particular, aqueles que estão aqui em baixo. Essa foi a grande lição dos últimos quatro anos: pensar sobre a morte gera empatia.