A importância de um retrovisor
“Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo”.Álvaro de Campos
Todas as manhãs são diferentes. Posso acordar bem disposto, mal disposto ou assim-assim. Posso acordar alegre ou triste, como naquele afamado fado. Por vezes, o meu despertar é firme, audaz e resoluto; e outras é tímido e delicado. Não sei se acontece convosco, mas comigo é do seguinte modo: em cada alvorada, um mosaico de contradições. Às vezes dá-se mesmo o caso de num segundo apenas tudo o que descrevo se alterar num ápice, e o Francisco que acordou ousado passa, no instante seguinte, a ser o Francisco que acordou ousado, e que, sem explicação repentina, deixou de o ser. As circunstâncias alteram-se e alteram-me. Não sou o mesmo se começar a chover. Tantas vezes pergunto quem sou. E ai de quem me enviar uma mensagem com Há de haver sem o h. Fico irreconhecível. Mas, infelizmente, sou sempre eu próprio. De cara lavada ou no meio de pocilgas interiores, o Francisco é o Francisco.
Hoje quando acordei olhei-me fixamente no espelho. Minutos antes havia aberto a janela e confirmara de que se tratava de um dia soalheiro. Decidi confirmar novamente, olhando para o céu. Como quem pleonasma, reconfirmei. Era de facto uma daquelas manhãs invulgares: a confiança musculada, a masculinidade orgulhosa, a firmeza de espírito e a alegria imberbe de não me sentir ridículo por nada. Até contraí a parede abdominal, tal não era a autoestima. Não havia barreiras, nem ameaças, estava tudo no sítio. Conforme aconselham os especialistas da autoajuda, essa inquestionável ciência, contemplei-me novamente e acreditei muito em mim. Insuflado pela perfeição de uma vida graciosa de 28 anos, saí de casa e inalei o ar puro da cidade, se é que ainda cabia alguma coisa neste peito impante. Abri as portas do meu C1, mas imaginei-me sentado num Tesla de nova geração. Mas ao fazer a manobra para tirar o carro do parque de estacionamento, reparei, pelo retrovisor – o retrovisor é um espelho diferente, que mostra os defeitos – que havia sido invadido por matéria estranha. Pensei que fosse um pequeno inseto, um insignificante invasor do rosto. Tentei, por isso, afastá-lo com as mãos. Só que a ameaça era real. O que julgava alheio e com asas era afinal o mais profundo de mim mesmo a querer emergir. Era uma borbulha, daquelas que doem, que decidem estacionar mesmo no centro da testa, que nos lembram quem somos, de que matéria somos feitos. E não há EMEL que nos valha. O reboque é o tempo. E a borbulha estava ali mesmo enquadrada, na posição certa, perfeita para a decapitação, como uma mira, como qualquer coisa a querer gritar-me ao ouvido: não te esqueças da tua condição de homo sapiens sapiens.
É que de repente fez-se luz, não fosse a manhã de sol. Eu estava a caminho do hospital, de onde escrevo este texto, para fazer uma pequeníssima cirurgia ao peito, enquanto a enfermeira, com caridade infinita, procurava não se rir do embuste que jazia imóvel à sua frente: “tem aqui a sua pulseira cor de rosa, senhor Francisco. Depois se tiver dores no mamilo, tem aqui o medicamento”. Eu tentei esconder-me, mas era tarde demais.
Foi mesmo assim, conforme decidiu o universo sem me perguntar nada. Uma borbulha colossal e uma operação à mama direita (ainda por cima o meu lado mais forte). O pano havia caído. Subitamente, sem mais nem menos, sem aviso prévio, sem as pancadas de Molière, que a vida não é um teatro. Regressei ao meu estado normal. Ao estado de me sentir ridículo. Ridículo como sou. Como somos: pequenos, indefesos, desproporcionados face à dimensão do mundo e das suas obras, cuja autoria tantas vezes julgamos ser nossa. Sem exceção, embora tantas vezes em negação. Faça sol ou faça chuva, encharcar-nos-emos da humildade que precisamos como água para beber. Isto é, de humanidade. Valha-nos aquele espelho que nos recorda que, antes de tudo, somos ridículos. Um espelho que todos os dias nos lembra que todos os dias começam do chão. E de lá não saímos nunca. Mas não é um espelho qualquer. Tem de ser, pelos vistos, um retrovisor. O retrovisor dá-nos o ponto de partida certo.

