A individualidade e a colectividade: o uso do “eu” e do “nós”

por Ana Monteiro Fernandes,    14 Dezembro, 2024
A individualidade e a colectividade: o uso do “eu” e do “nós”
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A dicotomia entre a colectividade e a individualidade sempre fiz parte do ser humano e da sua psique: de um lado a necessidade de socialização e de pertença a algo ou a uma comunidade ou colectividade, do outro a necessidade da sua afirmação enquanto indivíduo, a vontade de desenvolver a sua própria individualidade. “Eu, tu, ele, nós, vós, eles”, desta forma aprendemos os pronomes pessoais na escola primária, e estes pronomes importam porque a forma como falamos também reflecte a forma como pensamos. Há um “eu” e um “nós”, e assim aprendemos que além de um eu individual, em que só o indivíduo conta, há também um “nós” que nos ajuda a sair do centro do nosso umbigo e que, claro está, supre a nossa necessidade de comunicação com o outro e, acima de tudo, de pertença a algo que nos faça sentir bem e integrados.

Mas atentemos na palavra comunicação que surge como um ponto chave. Uma das primeiras coisas que aprendemos nos cursos de Ciências da Comunicação e que nos remete à escola de Palo Alto é a seguinte: “É impossível não comunicar. A comunicação é inerente à vida humana e todo o comportamento é uma forma de comunicação em si mesma, tanto de forma implícita quanto explícita. Por exemplo, “ficar em silêncio” é uma forma de informação.” Trata-se do primeiro axioma, dos cinco axiomas da comunicação desenvolvidos por Paul Watzlawick, teórico da teoria da comunicação e um dos fundadores da Mental Research Institute de Palo Alto. Mas vamos mais longe, a psicologia também nos explica como a nossa personalidade e capacidades se desenvolvem também em sociedade. A minha ideia do que o outro pensa ou pode pensar sobre mim acaba por ser o espelho daquilo que penso que sou e, em última instância, condiciona, molda e forja as minhas próprias atitudes, tendo um papel importante no meu desenvolvimento. Por isso as palavras que escolhemos para comunicar também contam e podem ter um grande poder, tanto para o bom ou para o mau. Recordando só um exemplo, se observarmos os casos das “crianças selvagens” que acabaram por não ser educadas em contexto social, verificamos como há diferenças significativas na sua cognição e capacidade de comunicação. Recomendamos o filme “L’enfant sauvage”, em português “O Menino Selvagem”, de François Truffaut, para quem se interessar por estas temáticas.

Mas, por outro lado, se o “nós” nos remete para um sentido comunitário que nos faz olhar para além do “eu”, também é lícito que se faça esta pergunta. Se há um “nós”, isso obrigatoriamente quererá dizer que os “outros” existem em oposição a “nós”? “Eu” vs “nós”; “nós” vs os “outros”?

É verdade que a psicologia de massas explica como grandes aglomerações podem conduzir a um maior automatismo do comportamento, a um maior alheamento, aumentando assim o poder que a influência do social, a chamada pressão social, tem sobre o individual. Há também um lado irracional que pode passar para primeiro plano quando, por exemplo, assistimos a grandes eventos como jogos de futebol, ou basta pensar como a experiência de ouvir música em conjunto é totalmente diferente da experiência de ouvir música quando se está sozinho. O mesmo acontece quando se assiste a um evento religioso. Nietzsche tem uma explicação para tal, fazendo uma releitura do véu de Maya de Schopenhauer, utilizando a sua divisão entre as artes apolíneas e dionisíacas. Sendo as artes dionisíacas as artes sensoriais por excelência como a música, por exemplo, podemos constatar como esse lado sensorial, espoletado até pelo lado repetitivo da música ou dos cânticos em jogos, provocam um efeito que nos faz aceder a um lado mais sensitivo, menos consciente, que conduz a uma supressão da nossa consciência individual se essas experiências forem vividas em grupo. Não raras vezes, saímos de um concerto ou de jogo de futebol em que torcemos pela nossa equipa com esta sensação de descarga das frustrações ou preocupações do dia-a-dia, ou de alívio, mas também com a impressão de, naqueles minutos, termos feito parte de algo em união.

Não é ao acaso que, de igual forma, os chamados desportos para massas começaram a desenvolver-se no encalço da revolução industrial, quando as dinâmicas laborais se modificaram com o fordismo e o taylorismo, ao mesmo tempo que as grandes cidades começaram a ganhar um cunho mais fabril, recebendo pessoas das periferias ou dos locais rurais à procura de uma nova oportunidade para as suas vidas, ganhando efervescência nos loucos anos 20 no rescaldo de uma grande guerra e às portas de uma outra. Juntam-se a estes factores condições laborais demasiado automatizadas, capazes de levar à loucura, tal como o filme “Tempos Modernos” de Charles Chaplin exemplifica, e um desejo acrescido destas mesmas massas de evasão do seu dia-a-dia. O isolamento próprio das cidades industrializadas e fabris, no momento em que o trabalho passou a ocupar grande parte do dia das pessoas, não faria com que estas mesmas pessoas sentissem um desejo de evasão, algo que fizesse suprimir a consciência individual de si mesmas e do seu dia-a-dia? Tal não faria com que a partilha de uma experiência, em conjunto com um colectivo, ganhasse assim uma maior importância? Há uma individualização do “eu consciente” que acaba por ficar em segundo plano, em detrimento de um sentimento partilhado com uma comunidade, que tanto pode ser resultado de uma evasão, expurgação ou catarse do dia-a-dia, como da falta de um sentimento de partilha com uma colectividade ou comunidade que esteja, no mesmo momento, a expressar o mesmo sentimento. Aqui podemos já entender a primeira grande parte da questão, o “eu vs nós”. Mas quanto à segunda parte, se há um nós, esse nós tem de existir em oposição aos “outros”? “Nós” vs “os outros”?

Vamos pensar nos jogos de futebol, quando uma determinada claque torce por uma determinada equipa. Há, efectivamente, uma outra equipa contra a qual se está a competir e, neste caso, há efectivamente um “nós” contra os “outros” que, não raras vezes, quando o lado irracional impera, resvala para agressões, actos de desrespeito para com os “outros”, para a defesa daqueles que, supostamente, são os “nossos”. O próprio ambiente pode ser propício a isso e, se nos deixarmos dominar, o efeito de massas torna-se negativo. Outra aplicação prática é como este mesmo efeito de massas e a supressão da nossa consciência individual foram utilizados, no sec.XX, para a efervescência de um sentimento de revolta em colectivo numa sociedade europeia a recompor-se dos estilhaços de uma primeira guerra mundial, o que levou a que um partido tal como o nazi duplicasse a sua base de apoio, passando de 18 para 37% dos votos e de 107 para 230 deputados, nas eleições alemãs de 1932.

Sendo estes movimentos alimentados por sentimentos de orgulho nacional levados ao extremo, as mesmas campanhas de propaganda levadas a efeito com esse propósito alimentavam-se, sim, dessa necessidade de evasão das massas que, muitas vezes, pode funcionar como uma forma de exteriorização do que sentem que vai mal no dia-a-dia. Por isso é que é tão apelativa a ideia de se forjar um inimigo comum que seja alvo das nossas frustações. Neste caso, um “nós” significa mesmo um antagonismo face aos “outros”, se há um “nós”, então existem os “outros” que não se podem imiscuir. Compreendemos, então, que a nossa necessidade de pertença a uma comunidade tanto pode ser algo positivo, como pode ser, também, susceptível a um tipo de manipulação com consequências nefastas, de exclusão, ao invés de uma união que as colectividades devem fomentar. Aqui penso que o problema não estará numa colectividade em si, em se dizer que se “é” de um clube ou de outro, ou que se ficou contente por um determinado concorrente num programa ter ganhado ou ter ficado bem classificado. Popularmente existirão sempre estas dinâmicas, e enquanto humanos iremos sempre sentir uma necessidade de pertença a algo, ou de torcer por algo. A perversidade acontece quando existe uma manipulação por trás que nos faz crer que os “outros” não são dignos do mesmo respeito, dignidade e igualdade de direitos.

Tendemos a intelectualizar demais aquilo que em comunicação e publicidade é bem simples: tudo comunica e a forma como se comunica é importante e cria desejo, ou colmata a necessidade, mesmo que superficialmente, daquilo que se deseja. A forma mais eficiente de comunicação e de publicidade deve ter sempre como objectivo ir bater ao nervo de uma necessidade em falta, e quando essa necessidade se sente em colectivo é quando a manipulação pode acontecer. E porque é que nos deixamos manipular?

Não é tanto por uma questão de se ser mais ou menos ignorante, mais ou menos intelectual, mais ou menos inteligente. Todo o ser humano é susceptível de manipulação quando sente necessidade de algo ou de manifestar algo. Se os veículos normais não oferecerem uma resposta, o ser humano vai procurar essa resposta aos locais em que elas são prometidas. Ou seja, se a comunidade à nossa volta não responder de forma saudável ao desejo de comunidade do ser humano, mais facilmente as massas serão manipuladas ou mais facilmente o colectivo que deveria ser, a priori, algo saudável, tenderá a ter um efeito negativo sobre o individual. Tratam-se de estratégias básicas já utilizadas no passado e que voltam a ser utilizadas novamente. Basta ver o contexto laboral no seio da revolução industrial e o rescaldo da primeira guerra mundial. Mais recentemente, a crise de 2008 também nos deveria ter ensinado algo. O problema não está em pertencermos a um “nós” ou fazermos parte de uma certa identidade, todos nós precisamos disso. O problema é quando num país ainda desigual como Portugal, as necessidades das mesmas comunidades continuam a não serem ouvidas. É quando se ouvem os auto intitulados heróis que não se cansam de dizer aquilo que a nossa própria irracionalidade quer ouvir, e assim movimentos não democráticos podem chegar a poderes de decisão por via democrática.

O desejo de comunicação no ser humano é tão grande que foi por essa mesma razão que inventou a escrita, a arte. Basta pensar no motivo pelo qual os nossos antepassados começaram a desenhar nas cavernas figuras que exemplificavam o seu seu dia-a-dia. Não só isto ajudou numa auto consciencialização, mas também na criação e demonstração de uma cultura em conjunto. Mas não é necessário irmos tão longe. Pensemos nos nossos avós que cresceram numa altura em que a maior parte só teria a quarta classe ou nem isso, muitas das vezes só a primeira ou segunda classe, e isto quando efectivamente iam escola. O mais curioso é como uma grande parte destas mesmas pessoas sempre conseguiu manter uma relação estreita com as palavras, seja pelos trocadilhos ou pequenas lenga-lengas memorizadas, ou poemas populares. Estas pequenas demonstrações de arte popular não seriam uma escapatória do trabalho árduo do seu dia-a-dia?

Pensemos numa colectividade como os ranchos, por exemplo. Lembro-me, enquanto jornalista, de ter falado com um senhor à frente de um rancho folclórico da minha cidade e de me ter dito que, espontaneamente, estas eram formas dos jovens de então escaparem ao controlo dos pais, viajarem, fazerem festas em conjunto e conviverem. Houve depois aproveitamento político, não quer dizer que a necessidade de algo para escapar a um certo controlo ou do trabalho, ou dos pais, ou da realidade do dia-a-dia. Houve foi uma necessidade política de controlo destes movimentos porque houve um reconhecimento de que se não houvesse um controlo destas manifestações culturais populares, que teriam sempre de existir porque são inerentes ao ser humano, poder-se-iam sempre virar contra o próprio regime. O mesmo aconteceu com os primeiros conjuntos de rock, por exemplo, e não foi ao acaso que o próprio regime também organizou concursos para estas mesmas bandas. Do ponto de vista religioso, também nos podemos perguntar porque é que o cristianismo teve necessidade de aliar eventos e datas religiosas, às próprias datas das festas pagãs. A explicação é fácil, para garantir e não afastar novos seguidores, uma vez que estas práticas pagãs se encontravam demasiado enraizadas.

As colectividades e o “nós” sempre existiram e a forma positiva ou negativa como podem responder à manipulação depende da realidade que vivem e constatam no dia a dia pela sua própria experiência. Vivemos numa sociedade em que 60% do que é produzido no país pertence aos 10% mais ricos. 1% dos mais rico conseguem agregar 20% de toda a riqueza nacional. Se há a vontade de travar manipulações, há que estar perto então destas mesmas massas e entendê-las, não chega dizer que não se concorda com o estado das coisas de forma intelectualizada enquanto há um refúgio dentro da própria bolha. Será que sabemos fazer isso?

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