A influência do budismo em Dragon Ball

por Lucas Brandão,    1 Junho, 2023
A influência do budismo em Dragon Ball
Dragon Ball / DR

Este artigo inclui informação reveladora do enredo e do seu desenrolar sobre as obras abordadas, tanto de “Jornada ao Oeste”, como de Dragon Ball.

E se se afirmasse que a história do famosíssimo manga (e posterior anime) japonês Dragon Ball tem raízes no budismo? Não é uma conjetura, nem uma análise subjetiva. É, antes, um facto. Sabe-se que os grandes astros das artes marciais com impacto ocidental, como Bruce Lee ou Jackie Chan, tiveram uma indelével influência na forma como a história de Dragon Ball se desenrola. De igual modo, também se percebe um papel muito grande do futurismo e do extraordinário do cinema e dos primeiros mangas. Porém, e das filosofias e das religiões? Ao que parece, é o caso.

A literatura chinesa, embora muito vasta, sustenta-se, na história, a partir de quatro grandes clássicos: a saber, “Margem da Água” (datada do século XIV), com autoria atribuída a Shi Nai’an, narra a história de um grupo de marginais que formam um exército na dinastia Sung [960-1279] e que se tornam cruciais na resistência perante invasões estrangeiras; “O Romance dos Três Reinos” (datada do mesmo século), de Luo Guanzhong, traz a história de senhores feudais que, divididos, tentam restaurar/substituir a dinastia Han [206 a.C. – 220], uma das fases mais profícuas da história da China, durante o século II. Este período viria a originar nos Três Reinos [220-280] que fragmentam o país; e “O Sonho da Câmara Vermelha” (escrita no século XVIII), de Cao Xueqin, que é semi-autobiográfico e que conta a história das personagens (em especial femininas) que o autor conhece durante a sua vida, explicando com minúcia as estruturas socioculturais da sociedade chinesa na dinastia Qing [1644-1912], a última de todas.

Sobra “Jornada ao Oeste”, do século XVII, cuja autoria nos leva à figura de Wu Cheng’en e a um intervalo temporal anterior, situando-se na dinastia Táng [618-907]. A história conta uma peregrinação de um monge budista, Xuánzàng até à Índia (é um vulto e um percurso que, de facto, existiram) em busca de textos religiosos relativos à transcendência e à bondade, os sutras. Depara-se, assim, com um lugar que representa o sagrado e a palma simbólica da figura de Buda (a personificação do reconhecimento da impermanência e da impessoalidade dos fenómenos existenciais (da vida) e da plenitude espiritual).

Para o efeito, Guanyin, um boddhisatva (um indivíduo desperto e iluminado no sentido espiritual) sob a orientação de Buda, dá uma tarefa ao monge e aos seus três discípulos Sun Wukong, Zhu Bajie e Sha Wujing, para além de um príncipe em forma de dragão que transporta a esse monge. A tarefa tem, como objetivo, a expiação dos seus pecados num encontrar com a iluminação em que se encontram Buda e Guanyin. Trata-se de uma obra que, para além de fazer uma sátira ao governo chinês desse período, funde folclore e religião, colocando em perspetiva e em diálogo elementos taoístas e budistas, que refletem muita da religião na China nos dias de hoje.

É uma aventura recheada de significado espiritual e uma alegoria na qual os peregrinos vão explorando a Índia, enquanto fazem uma caminhada individual rumo à própria iluminação. A personagem que faz grande parte da ligação com Dragon Ball, a série da autoria de Akira Toriyama (também responsável pela bem-sucedida “Dr. Slump”) que se tornou num autêntico franchise, é o macaco que nasce de uma pedra que nasce da fusão dos cinco elementos (madeira, fogo, terra, metal e água). De seu nome Sun Wukong (a fonética já permite revelar a associação com o grande protagonista Son Goku), é o grande portador do tao, ou seja, do caminho da natureza e que sustenta tanta da filosofia cívica e comportamental chinesa. Com ele, traz diversas transformações corporais (também as personagens transformam-se), capacidades de combate esmeradas e porta segredos relativos à imortalidade, sendo conhecido como Qitian Dàshèng (traduzindo, o grande sábio equivalente aos céus).

Consoante consegue igualar as suas virtudes às das divindades orientais, os seus poderes vão crescendo. Wukong é logo a personagem que é apresentada inicialmente, embora Xuánzàng seja o protagonista do enredo. O macaco (daí “Sun”, que identifica a sua espécie animal) é apresentado como preso por Buda por se ter revelado contra o céu e é somente controlado por uma fita mágica feita de ouro que tem em redor da sua cabeça, sob a vigilância de Guanyin. Na sua apresentação, o famoso bastão mágico não difere muito daquele que Wukong usa, o seu Ruyi Jingu Bang, que vê o seu tamanho ser personalizado ao critério do macaco. A nuvem mágica é outro grande exemplo desta adaptação, sendo que, no caso desta narrativa literária, se trata da kinto’un. Os seus poderes são tremendos, desde a invulnerabilidade perante ataques de inimigos até à própria imortalidade.

É uma personagem que tem muito, claro está, do grande protagonista Son Goku, tanto no espírito irreverente e irascível, mas também nas capacidades que vai adquirindo consoante treina com o seu mestre e discípulo direto de Buda, Subhuti. O seu caminho é marcado por uma grande oscilação, dado que utiliza a sua magia para fazer travessuras e causar o caos. A sua força imensa somente seria sustida por intermédio de Buda que, após os apelos do Imperador de Jade — na mitologia chinesa, trata-se do senhor dos céus e da existência e o primeiro deus taoísta, o mesmo que faz de humanos deuses, como o caso de Dianmu (a deusa dos relâmpagos) —, decide sustê-lo numa montanha durante cinco séculos até encontrar Xuánzàng, que o acolhe na sua caminhada. De igual modo, para além da personagem de Son Goku, muito da personagem do vilão Broly, um humano que também era alegadamente torturado a partir de uma banda que usava. Os modos Super Saiyan que vão ativando (Goku e Broly) durante o trama acaba por ser o reflexo da sua evolução e da sua superação individual, aos olhos da virtude taoísta.

Porém, a associação entre personagens não se fica por aqui. A cientista Bulma, que é a primeira amiga de Son Goku, encarna a figura Xuánzàng, procurando com Goku e companhia as célebres e mágicas Dragon Balls. É uma adaptação que é discutida entre Bulma e Krillin, um lutador que é um dos companheiros originais de Goku. Contudo, privilegiando a personagem de Bulma, é uma personagem timoneira no sentido em que, para além de se prolongar durante quase toda a extensão de Dragon Ball, se trata do cérebro principal do trama, entendendo as novidades tecnológicas e robóticas que vão surgindo como ninguém. De igual modo, personifica o seu espírito incansável e persistente perante as adversidades que se vão proporcionando. Curiosamente, a própria personagem de Xuánzàng é, em muitas ocasiões, adaptada no feminino, em especial nas óperas chinesas, que dramatizam muitos dos seus contos lendários e clássicos.

Porém, também Zhu Bajie — uma personagem boémia e licenciosa que, por ter tentado seduzir a deusa da lua, Cháng’é, é punido pela Roda da Reencarnação e encarna uma personagem metade homem metade porco — e Sha Wujing (traduzido à letra para “areia desperta para a pureza”, é uma personagem essencialmente cómica e de grande suporte que assume uma aparência tenebrosa após, incidentalmente, partir um cálice de jade à Rainha-Mãe dos Céus) são adaptados. Estes são interpretados na forma de Oolong, um porco falador que transforma com regularidade a sua aparência, e de Yamcha, inicialmente inimigo de Goku mas que, com o desenrolar da história, se torna num dos seus confidentes, respetivamente. O rei da montanha de fogo, o Ox-King, encarna um dos vilões/demónios que tenta alcançar a imortalidade ao digerir a carne humana de Xuánzàng. Goku também abafa as chamas assim como Wukong no enredo, perante as adversidades que vão surgindo.

Os demónios que testam os protagonistas e que, por vezes, os colocam em confronto acabam por inspirar muitas das peripécias que se desenrolam em Dragon Ball. Muita da geografia desta obra literária é fantasiada, embora em muito inspirada pela Rota da Seda e pelos diversos pontos de passagem desta entre a Índia e a China, recheado dos tais demónios que os aguardam em altas montanhas e em grandes vales. São os desastres e as calamidades que marcam a jornada dos protagonistas e que os encaminham ao palco extraordinário do Griddhrakūta, um lugar semi-lendário no qual o protagonista recebe as escrituras de Buda. As personagens que se envolveram neste percurso longo e agitado alcançam a divindade que tanto almejavam. Aliás, na realidade, Xuánzàng traduziria os manuscritos que traria da Índia para o chinês, abrindo portas para que fosse ele um dos grandes responsáveis pela divulgação do budismo na China.

Muito do que é feito criativamente nos países a oriente é fortemente inspirado na vasta mitologia que existe, desde a xintoísta à taoísta (chinesa), passando pela hindu e pela budista. Um dos casos dessa mesma influência é o de Dragon Ball, um mangá/anime tão divulgado pelo mundo fora e cujas origens são relativamente desconhecidas. Apesar de se detetar uma grande influência de outros mundos (também filosóficos), especialmente na constituição dos vilões em forma de andróides, alienígenas e de outras experimentações científicas, na base, existe uma dimensão mais profunda: a da própria existência, a da transcendência e a da redenção. Para um mundo ocidental ainda tão sem compreender verdadeiramente do que é feita a cosmologia oriental, no sentido dos seus deuses e significados subjacentes, recorrer a animes e a mangás não é um caminho inusitado. Aliás, confere forma e matéria a algo que parece tão remoto, tão distante, mas que, na verdade, está bem perto.

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