A ingenuidade da democracia
Na semana passada, fiquei atónito com o acolhimento do grande encontro da Extrema-Direita no Centro Cultural de Belém. Mais do que um episódio isolado, este caso expôs a ingenuidade da nossa democracia: a crença de que a liberdade, por si só, basta para proteger as instituições e os valores democráticos. A discussão ficou presa no discurso reativo da própria extrema-direita, que evocou, tal como a direção do CCB, os princípios da liberdade de expressão. Tudo isto sem esquecer a eterna confusão sobre o papel das instituições públicas, neste caso as culturais.
Todos sabemos que os edifícios públicos, para além das suas programações, também acolhem alugueres. Contudo, não basta ter dinheiro para conseguir alugar o CCB. Estes alugueres devem, no mínimo, respeitar a missão e os valores da instituição. Não sejamos ingénuos: alguém acredita que o CCB alugaria o Grande Auditório a um grupo de música ligeira ou a uma empresa de venda de colchões? Claro que não. As instituições públicas não são armazéns multiusos; têm propósitos, valores e estratégias orientadas para a construção de um mundo mais justo, equitativo e livre.
Não acredito que a direção do CCB desconhecesse o teor deste aluguer. E, se o desconhecia, então temos dois problemas.
A minha indignação não se prende apenas com a ideia abstrata dos valores da extrema-direita, mas com o próprio discurso de convocatória do chamado “Evento dos Patriotas”. Para a promoção do evento usava-se a liberdade de expressão como arma de arremesso contra a tão evocada “ideologia woke”, num ataque direto a diversas minorias. É perverso assumir que as democracias devem ser o bastião das maiorias contra os grupos minoritários. Esse é o velho sistema ditatorial da opressão, ainda vigente em muitas partes do mundo e tão popular no século XX europeu. As maiorias de que a democracia nos fala são outras. Este evento, que reuniu várias correntes extremistas europeias, pretende, de forma declarada, influenciar a política nacional e europeia.
A defesa do livre acesso às instituições e do direito à liberdade de expressão recorre à falácia do costume. A palavra não é inócua; tem poder. Mesmo John Stuart Mill, um dos maiores defensores da liberdade de expressão, reconhecia um ponto de ruptura quando a palavra se torna fonte de caos. As palavras podem despertar utopias, mas também podem ser a faísca que incendeia sociedades e normaliza horrores. Hannah Arendt, ao analisar o nazismo, lembrou-nos que o mal começou no discurso, nas palavras que banalizaram o horror e tornaram aceitável o inaceitável.
A nossa sociedade está ferida, e os discursos de ódio estão a ser normalizados: nas televisões, nos conteúdos paupérrimos dos programas de entretenimento, nos comentadores e nas semanais “entrevistas exclusivas”; nas redes sociais, com a mão invisível que nos polariza e imprime preconceitos e estigmas que destroem vidas e comunidades. Em breve, essa profusão será reforçada nas ruas e nos espaços públicos. As instituições são, por natureza, conservadoras, mas não podem ser temerosas. O medo de contrariar a visão cada vez mais dominante pode torná-las cúmplices do seu contrário.
Michel Foucault recordou-nos que o poder se manifesta tanto no que se diz como no que se cala. Permitir qualquer discurso não é libertar; é abrir fendas por onde o próprio discurso pode destruir o que sustenta a liberdade.
E aqui chegamos ao paradoxo da tolerância de Karl Popper: se tolerarmos tudo, inclusive o intolerável, a própria tolerância deixará de existir. A liberdade de expressão, sem limites éticos, pode acabar por destruir a própria liberdade. Não podemos confundir liberdade com irresponsabilidade.
Está na hora de deixarmos de ser ingénuos, de reconhecermos o peso do que se diz e de escolhermos, sem hesitação, a democracia.

