A leitura não requer receita médica

por José Malta,    17 Janeiro, 2020
A leitura não requer receita médica
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Sou dos tais que tem um prazer enorme em ler e que anda sempre com um livro para onde quer que vá. Também sou daqueles que usa os transportes públicos com frequência como forma de fugir ao trânsito sufocante comum nas grandes cidades, e, durante o hiato entre o sair de casa e o chegar ao trabalho, há que ficar entretido. Para além dos fones que trago na mochila para ouvir música, também levo sempre o meu livro para ler, isto nas alturas em que a compacticidade dentro do comboio não se assemelha à de uma lata de sardinhas e o barulho de fundo consegue ser suportável. E não sou o único a fazê-lo, felizmente. Gosto também de ver o que algumas pessoas andam a ler e, tal como não se deve julgar o livro pela capa, não julgo as pessoas por aquilo que lêem. Há gostos para tudo, cada pessoa é livre de ler o que quiser e é bom que assim seja. Porém, no outro dia, quando estava de pé a ler o meu livro, de costas para duas senhoras sentadas nas cadeiras da carruagem, ouvi a seguinte conversa:

– Agora também trazes um livro para leres? Não costumas trazer. – disse uma.

– Sim, foi a minha médica que me receitou. Disse que me fazia bem. – respondeu a outra.

A conversa, no meio do borborinho, comum a uma manhã de um dia semana, foi o suficiente para que eu tirasse os olhos do livro e desviasse o meu olhar ligeiramente para trás. Não com o intuito de espreitar qual o livro em questão, mas sim para perceber se conseguiria tirar algo mais da conversa. Devo ter feito uma expressão facial característica de alguém bastante intrigado, mas a primeira coisa que veio à cabeça foi mais ou menos isto: “Mau. Querem ver que me ando a automedicar e ninguém me avisou?”.

É evidente que hoje em dia as pessoas têm a tendência em ler cada vez menos e grande parte das que lêem tendem a procurar coisas que sejam leves, que apenas sirvam para passar o tempo e que possam ler no telemóvel por exemplo. Em meados de 2019, a Qmetrics realizou um pequeno estudo no qual 43% dos portugueses inquiridos não leu nenhum livro nos últimos 6 meses. É preocupante este número, para um país com tão ilustres escritores e poetas, e também para um país onde a taxa de alfabetização não é comparável com aquela que tivemos, por exemplo, há cinquenta anos atrás. Fizemos um esforço enorme para que a educação chegasse a todas as pessoas e há que reconhecer que crescemos muito nesse aspecto. No entanto, as condições laborais em que grande parte de nós se encontra estão feitas para que não tenhamos tempo para coisas enriquecedoras como a leitura, que envolve um tempo que seja só nosso e que consegue ter efeitos positivos sobre nós mesmos, abrindo-nos diversos horizontes a cada página.

Para além dos livros terem um preço que nem sempre está ao acesso de todos – ou, pelo menos, as pessoas preferem gastar dinheiro noutras coisas – uma solução está nos e-books. Os livros no formato digital, para além de serem mais baratos e até mais amigos do ambiente do que os convencionais, têm ganhado diversos seguidores. Além do mais, conseguem, facilmente, ser encontrados na internet e nas redes sociais textos deliciosos, poemas simples e singelos e ainda trechos de livros que nos conseguem inspirar no dia-a-dia. Estes pequenos recortes deveriam funcionar como uma espécie de rastilho de modo a que o leitor fosse em busca do livro original encontrando as suas próprias âncoras, isto é, as passagens que seriam na sua opinião mais marcantes. Porém, por norma não é assim e essas frases muito bonitas são partilhadas sem que quem as partilhe conheça a sua origem ou o seu significado mais profundo. Os audiolivros e os podcasts também têm sido bastante procurados e, apesar dos consumidores considerarem tal coisa como um livro, é algo que retira completamente aquilo que de melhor há nos livros. Ter uma voz a debitar palavras não é a mesma coisa que estarmos a ler as palavras e a construirmos uma narrativa também à nossa maneira.

É difícil imaginar um médico a receitar um livro como forma de curar uma infecção ou uma depressão, quando no máximo pode dar um conselho ao paciente como um hábito que poderá melhorar a sua vida. É verdade que a leitura para muitos consegue ser um escape a muitas coisas pois é um momento que acaba por ser exclusivamente de cada um, onde só existe a pessoa e o livro. Se fosse um amigo ou um conhecido a dizer a uma pessoa “fazia-te bem ler um livro”, a resposta seria “para quê?” ou então “não tenho tempo para isso”. Quando é um médico a aconselhar (porque não acredito que médicos receitem leitura para o que quer que seja) ou uma pessoa que apresente um estatuto que demonstra ter um vasto conhecimento científico sobre a matéria já nos deixamos convencer, mesmo que nos diga outra coisa qualquer. Quando o dia não nos corre bem ou quando as coisas na vida vão tortas, ter alguma coisa para ler é ter algo onde nos consigamos refugiar, evitando a tendência que temos em pensar demasiado nas coisas. A leitura, embora não pareça, também é um acto criativo. Ao estarmos a conceber as palavras dos livros, podemos, também, criar ideias em nós ou até as personagens da narrativa à nossa maneira no nosso imaginário. Parecendo que não, é um acto tão criativo como o de o escrever, pois vamos gerando ideias, pensamentos, sensações através das palavras. E este é talvez o maior poder que existe na leitura.

Muitas pessoas entendem que uma pessoa que lê muitos livros é muito culta, erudita ou intelectual, termos que, muitas vezes, ofendem os leitores ávidos que apenas encontram prazer na leitura. A cultura não se mede pelos livros que uma pessoa lê, e há tanta coisa à nossa volta que representa cultura que os livros são apenas um pequeno ecossistema no meio de uma tão grandiosa biosfera. A leitura não requer receita médica, requer tempo, disponibilidade e uma enorme abertura da nossa parte ao conceber aquilo que lemos. Deixamo-nos levar pelo modo com que as palavras nos agarram. Tem efeitos positivos sobre nós, abre-nos horizontes e faz-nos sentir bem. Está ao nosso critério saber quais as doses e como a devemos administrar, seja de manhã, à tarde, antes de deitar, no comboio, no avião ou até mesmo à refeição. Ler faz bem e é das poucas coisas na vida que podemos usar e abusar sem quaisquer efeitos colaterais ou taxas adicionais. E ainda bem que assim o é!

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