A lotaria cultural
São raras as ocasiões onde valoramos devidamente aquilo que damos por adquirido, quase intrínseco, numa lógica costumeira e de banalização. É uma daquelas máximas que podemos aplicar nos vários domínios do nosso quotidiano, até porque faz parte da nossa essência e opera, essencialmente, em função da motivação de cada um de nós: perante o que mais interesse nos desperta, assoma-nos a perseverança e persistência que vão agudizando consoante a escassez ou dificuldades inerentes.
A vida é feita de escolhas, de prioridades, muito em função do que fizemos questão de evidenciar: a motivação, o contexto, o interesse. No contexto pandémico que vivenciamos, é, naturalmente, necessário priorizar e fazer escolhas, num prisma onde a saúde pública se perpetra como vértice inamovível, ligada umbilicalmente à economia, depauperada pelos efeitos da calamidade que se assombrou.
A Cultura foi sempre o “parente pobre” em Portugal, contrastando com a “Kultur” que Herder profetizava — o sangue vital de um povo. E, em particular, nesta conjuntura pandémica, as restrições impostas ao setor paralisaram-no e deixaram-no à míngua de apoios urgentes, com muitos dos seus operadores e trabalhadores privados de quaisquer rendimentos. Pese embora este cenário devastador, o setor nem sequer mereceu, inicialmente, da parte do Governo, a alocação de uma verba de 2% do Plano de Recuperação e Resiliência, para a retoma económica do país nos vários setores, o que apenas se sucedeu após insistência e proposta do PSD.
O cenário, porém, vai para além da desconsideração na alocação de verbas ou o reforço de apoios financeiros, o que, já de per si, é revelador do desprimor para com este domínio que nos é tão caro no intelecto: é um problema de fundo, de falta de estratégia, de valorização da Cultura na sua génese, começando desde logo na escola, da sectarização e instrumentalização do setor para guerrilhas ideológicas estéreis, que motivam sempre os mesmos compadrios na hora de se “promover” a Cultura. Na verdade, se há setor onde público e privado desempenham papéis de sobeja importância e, em muitos casos, a simbiose se revela mais frutífera do que destrutiva, esse setor é o da Cultura, e isso deve ser devidamente valorizado.
Num tempo em que deveria imperar, da parte de quem nos governa, a prudência na adoção de medidas, e numa altura em que a esperança, enquanto sentimento dominante, pode toldar o juízo, há sempre o risco de sucumbir à vertente emotiva sem qualquer razoabilidade em determinadas propostas que se queiram apresentar, achando que os fins, por mais beneméritos que sejam, justificam os meios. Assim não o é.
Vem isto a propósito do lançamento da iniciativa denominada “Lotaria do Património Cultural”, por parte do Governo e da Ministra da Cultura, em particular, comumente designada por “raspadinha do património cultural”, no passado dia 18 de Maio. Significa que qualquer pessoa que adquira uma raspadinha estará a contribuir para, em suma, financiar a preservação do património cultural.
Comecemos, desde logo, pelo audaz apelo da Senhora Ministra da Cultura em “envolver todos” na missão de angariar verbas para o Fundo de Salvaguarda do Património Cultural, sendo certo que todos nós já contribuímos para a requalificação e preservação do mesmo através dos nossos impostos. Se o Estado não cumpre o papel que lhe deveria caber, por princípio, então esta nova forma de coleta voluntária que é, de certo modo, proposta aos portugueses, encoberta numa messiânica missão, revela um retumbante falhanço no cumprimento daquele que deveria ser um dos seus desideratos, até pela falta de dotação orçamental que deveria estar reservada. Para além disso, espelha um desdém, fertilizado pelo descuido, para com o nosso Património Cultural que é, afinal de contas, a nossa História, a nossa identidade, o nosso cunho.
Portugal é o país da Europa onde se gasta mais dinheiro em raspadinhas. Mesmo sendo uma questão onde a liberdade e a autonomia da vontade imperam, dado que por princípio o destino que cada um dá ao seu dinheiro é da sua conta, são dados alarmantes que, naturalmente, merecem reflexão. Mais preocupantes se revelam os dados que mostram que grande parte dos jogadores da raspadinha (mais de 70%) pertencem à classe social baixa ou média baixa, segundo um estudo da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.
A ansiedade, que rapidamente escala em desespero, pela obtenção de rendimentos fáceis em jogos de sorte ou azar, é agravada numa conjuntura particularmente difícil como a atual, onde os efeitos nefastos da pandemia se fizeram sentir principalmente na privação de rendimentos a muitas famílias que, assim, num último reduto de angústia, recorrem a este escape para tentar o seu sustento. Situações extremas exigem medidas extremas, como sabemos.
É, por isso, chocante verificarmos que presumivelmente serão as classes mais vulneráveis, aquelas que o Estado deveria amparar no seu ofício, a contribuir para a preservação do património cultural, substituindo o Estado na missão que lhe caberia e cujos recursos, por via dos impostos, já devia ter assumido. Uma pirâmide alineada, um ciclo invertido. Mais inusitado se torna quando é o próprio Estado que promove o jogo, numa deriva, no mínimo, imoral, com particular gravidade no atual momento em que nos encontramos.
Com que imagem ficará a Cultura do nosso país quando se reduz a sua importância à decisão de raspar um bilhete, num jogo de fortuna? Não será, certamente, este o sangue vital de um povo a que Herder aludia na sua definição de Cultura. Ao invés de dar o exemplo pela requalificação do património, a promoção da literatura, o gosto pelas artes, cinema, teatro, pela nossa História, há uma alienação do Estado perante aquilo que deveria ser a sua missão.
A raspadinha da Cultura é mero sintoma de uma progressiva alienação e incúria de quem nos governa, sobretudo de quem ideologicamente se arroga da supremacia moral na tutela deste setor. E é isso que perpassa para a perceção pública, onde os factos são incontornáveis: no estudo Barómetro Gerador Qmetrics 2021, levado a cabo pela plataforma independente de jornalismo, cultura e educação, “Gerador”, 72% dos inquiridos revelaram-se bastante insatisfeitos com o comportamento do Estado para com a Cultura, sendo que 85% defendem um aumento do Orçamento de Estado. Preocupantes, ainda, são os dados deste estudo que revelam um aumento do alheamento para com a cultura na faixa dos 15 aos 24 anos face ao ano transato, precisamente nas gerações mais jovens, onde deveria brotar a criatividade, o estímulo intelectual para garantir o respeito pelo acervo cultural próprio e o de todos. Não havendo reciprocidade, a perceção ressente-se e a descrença aumenta.
“In a mad world, only the mad are sane”, suspirava Kyoami no filme “Ran”, de Akira Kurosawa. Conforme referimos inicialmente, vamos banalizando o que damos por adquirido e a Cultura em Portugal está longe de ser um dado adquirido.