A Mãe
Este texto integra uma série de crónicas sobre a música de José Mário Branco e o disco de homenagem à sua obra, “Águas paradas não movem moinhos”, composto para 6 Violas (sexteto de violas d’arco), que se apresentará no CCB no próximo dia 4 de Novembro.
A canção “Águas paradas não movem moinhos” integra “A Mãe”, um álbum fascinante da discografia de José Mário Branco. Talvez o meu preferido.
Quando ouvi este disco, fui surpreendido com a quantidade de soluções simples, no entanto, musicalmente eficazes, definidas para ajudar a participação dos atores na interpretação ao vivo da banda sonora da peça homónima, que foi encenada pelo Teatro da Comuna em 1977. A simplicidade de processos combinada com a originalidade das propostas musicais, evidencia uma sofisticação artística inspiradora.
Prólogo de José Mário Branco:
Escutemos o tema “Prólogo” que abre este maravilhoso disco. Acompanhado por um bater de coração grave, José Mário Branco lança no espaço auditivo uma melodia longínqua, que ecoa e ecoa ao longo da canção. Este misterioso eco, cantado pelos actores da peça, transporta a melodia e poema para um lugar remoto, para uma introdução vaga, secreta e sedutora que inicia a aventura de “A Mãe”: “Meus senhores, vamos agora contar/ uma história que não é para chorar/ Abrir os olhos à vida/ Não há razão proibida/ de pensar. Quantas mães estão aqui pra m’escutar?/ Quanto amor para aprender e desejar?/ A semente perde a calma/ É tão lindo ver as almas/ a acordar”.
Ao aperceber-me do efeito mágico provocado pela voz de José Mário (voz principal) em conjunto com eco polifónico feito pelos actores (vozes secundárias), resolvi adoptar este mesmo paradigma para arranjo de “Prólogo”. No fundo, uma viola do sexteto assume a voz principal interpretando a melodia de forma livre. Entretanto, as outras violas começam lentamente a aparecer, tocando a mesma melodia em pianíssimo. Uma vez que não há letra, o arranjo para 6 Violas destaca o diálogo peculiar entre a recordação (os ecos protagonizados pelas violas distantes) e a afirmação (a melodia primeira executada com várias cambiantes dinâmicas).
Podem ouvir o meu arranjo de Prólogo aqui:
Todavia, no caso da canção “Águas paradas não movem moinhos”, o processo foi outro. Águas paradas não movem moinhos de José Mário Branco:
“Na unidade é que eu pego/ pra virar o bico ao prego/ Milhões de trabalhadores/ são a força que tu fores/ Anda prá luta comigo/ Águas paradas não movem moinhos.” Influenciado pelo espírito reivindicativo da letra desta canção, pela energia lutadora que a melodia com cariz tradicional e o tambor pulsante que a projecta, transmitem, optei por concentrar o meu arranjo na intensidade rítmica e na evolução dinâmica.
A música arranca com um ostinato rítmico (uma repetição ad aeternum de um padrão rítmico) numa das violas do sexteto, ostinato esse que suporta a apresentação de múltiplas variações da melodia tradicional, partilhada entre as restantes violas. Por cada melodia repetida, aumenta a dinâmica harmónica do arranjo, modifica-se a organização de funções de cada viola e amplia-se o estado de espírito, fortificando lentamente a revolta. Até ao momento em que o constante crescimento estoura, arrebenta num desenfreado de barulhos (quase como se as violas explodissem), para regressar num ápice ao ostinato rítmico inaugural, sob o qual o refrão é repetido algumas vezes, terminando a música em glória.
Podem ouvir o meu arranjo de Águas paradas não movem moinhos aqui:
A obra de José Mário Branco é generosa, irreverente e estimulante. Na próxima crónica falarei de duas melodias que, de tão belas, motivaram caminhos díspares de criação.