A minha avó recitava-me Bocage e não sabia: como uma história resgata uma real memória
Este foi o meu segundo Natal sem a minha avó. Quando, no final de 2019, prestes a entrarmos no fatídico ano de 2020, sofreu um AVC, a sua condição evoluiu para demência vascular. Até à sua morte, conseguiu registar melhoras, mas o comportamento e memórias ficaram para sempre afectados. Não sei, na altura, porque o fiz — talvez para resgatar um pouco dela, antes da possibilidade da partida — mas perguntei-lhe, quando estava deitada na cama do hospital e mal conseguia falar, se ainda se recordava de uma lengalenga que me costumava contar quando era criança, que começava assim, “Dois bichanos se encontraram/ Sobre uma trapeira um dia…” Ela conhecia-a porque, nos tempos de escola, incumbiram-lhe a tarefa de decorar toda a lengalenga dos gatos para a dizer numa festa da aldeia. Escusado será dizer que a minha avó só tinha a antiga terceira classe. Talvez, por isso mesmo, a atenção virada para ela, naquele momento, a tenha marcado tanto e nunca mais se esqueceu da lengalenga, embora com algumas falhas aqui e ali, principalmente no final da história. No momento em que lhe perguntei se ainda se recordava dela, no entanto, ela abanou a cabeça para me dizer que não, mas reparei que desviou o olhar para o lado, como quem faz um esforço para se recordar. Quando vi que estava a fazer esse esforço arrependi-me da pergunta e disse-lhe logo para deixar estar, que não fazia mal nenhum. Um, dois, três dias se passaram e não voltei a falar disso. Eis que, passado algum tempo, sem eu lhe ter voltado a perguntar, a minha avó começa a recitar a tal lengalenga dos gatos, sem falhas, do início ao fim, quando já antes do episódio do AVC baralhava um pouco o final. Não contente, apenas, com facto de se recordar da lengalenga, fazia questão de a recitar umas 6 ou 7 vezes, por hora, durante o dia inteiro. Tanto a podia dizer do nada, como nas conversas arranjava sempre pretexto para a voltar a dizer.
Quando fiz a pergunta, se se recordava da história dos gatos, fi-lo mais num momento de infantilidade egoísta do que outra coisa. Compreendo que, numa outra perspectiva, isto até pode ser anedótico. Não bastava a fatalidade da senhora estar numa cama de hospital, alheada e desconexa do que se passava à sua volta, com, apenas, pequenos momentos de ligação à realidade, já eu estava a perguntar por histórias e a fazê-la esforçar-se. Fi-lo sem consciência porque estava a ver o nosso “Rio Tua” a desvanecer-se e, com isso, uma parte de mim, também, naquela pequena terra de manhãs de ar fresco nos pulmões, de acordar ao som do rio, da lareira, das bonecas de trapos que, no dia seguinte, se iriam desfazer, das brigas do setter irlandês e da “Micas”, a gata sem raça mas com personalidade, que também já cá não estão. Do meu medo do cão, que só queria ser meu amigo, e de correr desenfreada atrás da gata porque era a minha forma de tentar fazer amizade com ela, embora ela tivesse medo de mim. De como, à noite, quando dormia com a minha avó, a Micas ia à nossa cama e me mordia num dedo. De como eu, triste com a Micas, corria atrás da gata da vizinha porque tinha muito melhor feitio e gostava de brincar. De, nesta altura, irmos ao musgo; do pinheiro real de um pinhal que não o nosso, mas não fazia mal, porque todos faziam o mesmo. Da árvore de Natal que, para mim, era a mais bonita do mundo e da forma como a íamos mostrá-la a todos os vizinhos — ai de quem lhe pusesse um pequeno defeito que fosse — eu arranjava logo 300 desculpas para dizer que não, aquela era perfeita e era a melhor árvore do mundo. Mas, também, da primeira vez que vi um sapo verdadeiro na horta e me assustei; de sentir as pedrinhas do rio nas plantas nos pés e de sentir os peixinhos picarem nas pernas; do som das rãs; dos banhos de mangueira; de, uma vez, eu ter ficado atrapalhada porque fui para um sítio do rio onde não tinha pé e tive sorte porque o meu irmão mais velho se apercebeu a tempo.
Esse “rio Tua” já não volta, já não existe — era um mundo que, invariavelmente, iria desaparecer com ela e uma parte de mim iria transformar-se em passado, quando, no presente cheio de indefinições e incertezas, o futuro ainda não começou nem irá começar tão cedo. O que eu não esperava era que, mesmo na sua incapacidade do momento, a minha avó, no seu íntimo, iria levar a pergunta a sério e permanecer com ela no inconsciente, na memória, nos recônditos ou arquivos da memória, ou lá o que lhe queiram chamar. Dias depois, aquela simples pergunta iria conduzi-la à altura em que lhe foi pedido para decorar o texto, sem esquecer os anos em que me o contava a mim e eu a chateava para me o contar. Do tempo que eu lhe exigia que me repetisse as histórias umas 10 vezes, quando se preparava para apagar a lareira, e ela fazia Natal todos os dias porque me pedia para fechar os olhos e eu, a fingir que não sabia, ficava contente porque, de repente, tinha um pequeno chocolate na boca.
O engraçado é que eu a minha avó, no fundo, éramos muito diferentes. Se lhe perguntassem, era capaz de entregar uma lista maior que o velho e o antigo testamento juntos, só com defeitos meus, e ainda acrescentar mais alguns como bónus. Lembro-me da primeira vez, ainda pré-adolescente, quando, inflamada depois de um 25 de Abril, lhe disse que gostava muito de determinada personalidade política. Literalmente, só faltou correr atrás de mim com uma vassoura na mão. O meu pai ria-se e a minha mãe levava as mãos à cabeça com medo que a 3ª Guerra Mundial se desencadeasse ali. Entrávamos algumas vezes em choque, pelas imensas diferenças geracionais, mas o que tínhamos em comum era gosto de ouvir dizer, contar ou saber uma história. Isso era verdadeiro, foi o que vingou até ao fim e está, também, relacionado com o facto de eu gostar de escrever. O que guardo dos seus últimos Natais era como seguia, com interesse, qualquer filme que retratasse um qualquer conto popular. Ria-se muito e depois, no final, com uma expressão séria, dizia do alto da sua idade, “só fantochadas. Onde já se viu tanta bicharada. A história não é assim.” Houve, no entanto, um Natal em que se chateou comigo a sério porque não lhe disse, por distração, que determinado filme de animação ia dar na TV.
O que há a reter de todo este texto é que uma memória, conduzida por uma história, deu à minha avó um vislumbre de apego à realidade e resgatou-a, por instantes, do alheamento em que a sua cabeça vivia, quando sofreu o AVC. As histórias são memórias e resgatam memórias, mas para isso é preciso compreender a maior dádiva do mundo — viver. Talvez quem vá mais longe são aqueles que têm a coragem de encarnar as suas próprias histórias e, para tal, atrevem-se a acordar da sonolência em que grande parte de nós permanece. Descobri , afinal, que a tal lengalenga dos dois gatos era, nem mais nem menos, do Bocage. A minha avó era culta e recitava-me Bocage sem eu saber, mas agora sei. Aqui fica para quem tiver curiosidade de a saber:
Dois bichanos se encontraram
Sobre uma trapeira um dia:
De um deles todo o conchego
Era dormir no borralho;
O outro em leito de senhora
Tinha mimoso agasalho.
Ao primeiro o dono humilde
Espinhas apenas dava;
Com esquisitos manjares
O segundo se engordava.
Miou, e lambeu-o aquele
Por o ver da sua casta;
Eis que o brutinho orgulhoso
De si com desdém o afasta.
Aguda unha vibrando
Lhe diz: ”Gato vil e pobre,
Tens semelhante ousadia
Comigo, opulento, e nobre?
Cuidas que sou como tu?
Asneirão, quanto te enganas!
Entendes que me sustento
De espinhas, ou barbatanas?
Logro tudo o que desejo,
Dão-me de comer na mão;
Tu lazeras, e dormimos
Eu na cama, e tu no chão.
Poderás dizer-me a isto
Que nunca te conheci;
Mas para ver que não minto
Basta-me olhar para ti.”
”Ui! (responde-lhe o gatorro,
Mostrando um ar de estranheza)
És mais que eu? Que distinção
Pôs em nós a Natureza?
Tens mais valor? Eis aqui
A ocasião de o provar.”
”Nada (acode o cavalheiro)
Eu não costumo brigar.”
”Então (torna-lhe enfadado
O nosso vilão ruim)
Se tu não és mais valente,
Em que és superior a mim?
Tu não mias?” – ”Mio.” – ”E sentes
Gosto em pilhar algum rato?”
”Sim.” – E o comes?” – ”Oh! Se como!…”
”Logo não passa de um gato.
Abate, pois, esse orgulho,
Intratável criatura:
Não tens mais nobreza que eu;
O que tens é mais ventura.”