A misteriosa e evidente morte de Primo Levi
Foi há precisamente 30 anos que o escritor e químico italiano Primo Levi fora encontrado sem vida na entrada do seu prédio, após uma queda do terceiro andar. Existem inúmeras dúvidas se se terá tratado de suicídio ou de um mero acidente. O que terá realmente acontecido? A resposta a esta questão divide biógrafos, historiadores, amigos e até familiares, havendo várias opiniões e teses sobre o assunto. Porém, uma análise da vida deste escritor e químico que enfrentou com uma coragem e uma determinação inigualáveis o inferno e o horror do Holocausto e dos campos de concentração em Auschwitz, tendo também uma vasta obra literária fortemente marcada pelos episódios que ali presenciou e viveu, ajudar-nos-iam a compreender as possíveis causas da sua morte.
Primo Levi nasceu em Turim, Itália, a 31 de Julho de 1919, no seio de uma família judaica mas religiosamente liberal, o primeiro filho de Cesare e de Ester Levi. Desde muito cedo revelou capacidades de conhecimento acima da média das crianças da sua idade, sendo também o único judeu das turmas nas quais transitava de ano para ano. Consta-se que tenha sofrido alguma pressão na escola devido à sua estatura franzina e religião. Durante a ascensão do fascismo, em 1933, fora obrigado a inscrever-se tal como outros jovens da sua idade na Opera Nazionale Balilla, a juventude fascista de Itália. Foi no liceu que, ao ler textos de vários cientistas, sendo o mais influente William Bragg, conhecido pela famosa lei que descreve a difracção da luz em estruturas cristalinas, apaixona-se pela ciência e decide que o seu destino é estudar química.
Concorre ao curso de Química na Universidade de Turim e forma-se em 1941 com extrema dificuldade em encontrar um professor que lhe pudesse orientar a sua tese, tudo devido ao antissemitismo que, tal como na Alemanha, se intensificava na Itália sob o regime fascista de Benito Mussolini. Assim como também tivera inúmeros obstáculos na procura de emprego, arriscando-se a trabalhar clandestinamente numa rede mineira em San Vittore, num projecto baseado na extração de níquel. Acaba por abandonar os trabalhos na mina na sequência da morte do seu pai, regressando a Turim e partindo tempos mais tarde para Milão em busca de novas oportunidades de trabalho.
Em plena Segunda Guerra Mundial, os movimentos de resistência ganhavam força em determinadas zonas de Itália, nomeadamente nas regiões próximas dos Alpes. Primo Levi e alguns dos companheiros formaram, em Outubro de 1943, um grupo de resistência, uma espécie de Partisan, com a esperança de se juntarem à Giustizia e Libertà, um movimento político cujos ideais se baseavam no socialismo e na liberdade. Porém, o grupo não tinha qualquer tipo de experiência ou formação militar e os membros foram facilmente capturados e presos pela milícia fascista pouco tempo depois. Foi nesta altura que, confrontado e pressionado pelos militares ao serviço do regime, confessou ser judeu, tendo sido imediatamente levado para Fossili, na cidade de Modena. Permaneceu num campo que estava sob o comando da Alemanha Nazi até ter sido levado para Auschwitz em Fevereiro de 1944, onde sofrera e presenciara as maiores monstruosidades que alguma vez a História retratou.
Tal como muitos outros que por lá passaram, foram-lhe retirados todos os seus bens pessoais, deixou de ter nome tornando-se apenas num mero número. Primo Levi fora submetido a trabalhos forçados na construção de uma fábrica de produtos químicos num dos subcampos de concentração próximos, em Monowitz, o que até poderia ser vantajoso, pois, visto que tinha um conhecimento vasto de química, tanto industrial como laboratorial. No início, foi submetido a trabalhos pesados, mas, posteriormente, com o avanço da construção, passou as suas últimas semanas a trabalhar num laboratório. Permaneceu naquela longínqua localidade na Polónia até ao exército soviético se ter aproximado, o que levou a que as SS (as tropas de protecção nazi – Schutzstaffel) forçassem a evacuação do campo, deixando apenas aqueles que estavam gravemente doentes no sanatório. Toda esta rusga foi um fiasco e resultou numa marcha sangrenta que poupou Primo Levi, que, na altura, se encontrava gravemente afectado pela escarlatina. Foi, então, libertado dias mais tarde pelo próprio Exército Vermelho e permaneceu num acampamento soviético de antigos prisioneiros de guerra até regressar a Itália, em Outubro do mesmo ano, percorrendo, com outros sobreviventes, várias linhas ferroviárias por diferentes países até ao seu destino.
Quando regressa a Turim, arranja rapidamente emprego na DUCO, uma fábrica de tintas ligada à prestigiada companhia norte-americana Du Pont. É nesta altura que, também, começa a sua aventura literária, cujos episódios vividos naquele palco do terror lhe inspirariam. Em 1947, publica a obra que lhe valeu o reconhecimento mundial, sendo, ainda hoje, considerada uma das mais importantes livros do pós-guerra, que descreve com detalhe o testemunho de alguém que presenciou a crueldade vivida nos campos de concentração: Se isto é um homem (Se questo è un uomo, título original em Italiano) foi o nome dado ao seu primeiro livro que mostra uma descrição exímia e pormenorizada do episódio que o marcara para o resto da vida. O título pode apontar tanto para uma obra poética como uma extensa reflexão ou ensaio mas no fundo trata-se de uma questão subjacente que pode ser retirada pelo leitor à medida que avança pelas páginas do livro.
Seguiram-se outras tantos trabalhos literários, como A Trégua, uma continuação da história retratada em Se Isto é um Homem com a descrição da viagem de regresso de Primo Levi a Itália; O Sistema Periódico, nomeado pela Royal Institution of Britain como um dos melhores livros de ciência alguma vez escritos, conta as suas aventuras com os diferentes elementos da tabela periódica, algumas retratadas com um humor bastante subtil e característico e outras passadas em Auschwitz; Se não agora, Quando?, um romance fictício sobre as aventuras de dois judeus que, durante a Segunda Guerra, formam, também, um grupo de resistência; Assim foi Auschwitz, escrito juntamente com o físico italiano Leonardo De Benedetti, que passou, também, por Auschwitz, recolhe um conjunto de textos sobre a experiência dos campos de extermínio; e ainda outros tantos romances e diálogos assim como algumas obras póstumas. Toda a obra literária de Primo Levi, bem como a sua história de vida, tornaram-no uma figura imortal na literatura e num símbolo da resistência humana, mostrando também como a ciência e as letras conseguem andar de mãos dadas. Chegou mesmo a regressar anos mais tarde, em 1983, a Auschwitz de modo a dar o seu contributo como testemunha do que foram realmente os campos de concentração, regresso esse gravado pela televisão italiana que o acompanhou durante toda a viagem.
No dia 11 de Abril de 1987, Primo Levi acabara por falecer devido a uma queda do terceiro andar do seu prédio em circunstâncias pouco esclarecedoras. Na altura, as investigações que se levantaram foram inconclusivas, admitindo-se que se terá tratado de um suicídio e não se um acidente, embora tal tese seja duvidosa para alguns. Alguém que se tornara num símbolo da resistência, num escritor de renome, num químico extremamente profissional que razões teria para pôr termo à sua vida? E o facto de ter carregado para sempre as memórias do que é viver num campo de concentração, testemunhando as maiores atrocidades alguma vez assistidas, teria alguma influência? Uma das célebres frases ditas por Primo Levi foi acerca da memória humana que é vista, segundo o próprio, como algo que pode ter duas faces, tendo propriedades boas ou más consoante as sensações que esta nos transmite:
“A memória humana é um instrumento maravilhoso, mas falacioso. As nossas memórias não são esculpidas em pedra, pois tendem a apagar-se com o passar dos anos. Mas muitas vezes estas podem mudar, ou mesmo aumentar, incorporando características estranhas.”
O maior problema que Primo Levi alguma vez tivera terá sido mesmo a memória: a memória de assistir ao massacre de milhares de pessoas naquele campo, a memória de sentir na pele as atrocidades do Holocausto, a memória de carregar para sempre as recordações do lado mais desumano do ser humano, memórias essas que aumentaram e que incorporaram as tais características estranhas como o próprio mencionara. Na altura da sua morte, o escritor Elie Wiesel, Prémio Nobel da Paz e também um dos mais influentes escritores do pós-guerra, comentou a morte do seu companheiro que conhecera nos campos de concentração com a seguinte frase: “Primo Levi morreu em Auschwitz há quarenta anos atrás.” O espírito de alguém que poderia ter tido um percurso de vida bem mais risonho fora amputado naquele que foi o maior palco do terror humano. Apesar de tudo, mais do que escritor ou químico, Primo Levi estará sempre associado à resistência à crueldade humana para todo o sempre. Será um símbolo das qualidades mais humanas que um ser humano pode ter, sendo dotado de uma força de vontade e de coragem que o tornaram num ser humano único.
E este foi o Homem.