A mulher e o trabalho

por Bernardo Oliveira,    8 Julho, 2020
A mulher e o trabalho
Fotografia de Tony Pham / Unsplash
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Atualmente, há uma opinião relativa ao papel da Mulher no mundo do trabalho que indica que esta apenas estava em casa, enquanto o marido trabalhava para sustentar a família. No entanto, fazendo uma análise do que a investigação histórica tem produzido, essa ideia é falsa ou bastante condicionada.

Na verdade, as mulheres exerciam um trabalho económico na produção, transformação e comercialização de bens. As economias, até ao século XIX, não seriam capazes de funcionar sem a participação das mulheres no trabalho.

No mundo ocidental, a maioria da população era camponesa, o que significa que eram pessoas com extremas dificuldades económicas. As suas habitações eram muito básicas, normalmente em terra batida, sem janelas ou chaminé. Para além disso, por vezes, compartilhavam o mesmo espaço com animais, o que indica alguma falta de limpeza e higiene na própria casa. O vestuário era normalmente repetido, e as refeições rudimentares, o que fazia com que lhes fosse absorvido pouco tempo na confeção de alimentos.

Por tudo isto, era impensável haver membros na família que não trabalhassem. Muitas vezes, as mulheres não ajudavam na agricultura, pois eram, na verdade, elas próprias agricultoras. No entanto, nem só no campo trabalhou a Mulher.

Enquanto que as camponesas trabalhavam na terra, nas cidades as mulheres exerciam várias profissões menores, assim como os homens, como despejos, lavadeiras ou hospitais. Para além disso, as mulheres vendiam nos mercados, nas praças e nas ruas, o que nos mostra a sua participação quer no setor terciário, quer também no primário e secundário. Só nas profissões especializadas, que exigiam formação intelectual, é que não desempenhavam funções, uma vez que estavam proibidas de entrar e frequentar a universidade.

Num estudo de Coimbra do século XVII, a maioria das pessoas que pediu autorização para realizar comércio eram mulheres, sendo que estas representavam 95% daquelas que estavam nas praças. Nas lojas, com uma maior estima social, e apesar de por vezes estar lá o casal, também era comum estar apenas o sexo feminino responsável pelas vendas. Nas tendas — atuais restaurantes —, muitas das pessoas que pediam licença eram mulheres, ao passo que nas estalagens costumavam partilhar a autoridade do espaço. Na verdade, muitas vezes, após o casamento, a mulher mantinha a sua profissão anterior ao casamento, e o seu marido também, mesmo que não desempenhassem as mesmas funções ou que não estivessem no mesmo espaço laboral. Contudo, pressupunha-se que a esposa teria autorização do marido para permanecer no seu posto de trabalho.

Em 1647, as lojistas constituíam 2/3 de todo o corpo destes profissionais, sendo o 1/3 restante composto por casais; estas constituíam 63% das donas de todas as casas de pasto; 80% dos estalajadeiros eram casais que trabalhavam em parceria; e das que exerciam atividades de comércio, 35% eram casadas, 25% eram viúvas e só 8% eram solteiras. Mais se pode dizer que estas trabalhadoras, vitais para o abastecimento da cidade, levaram a cabo ações de greve que perturbaram a vida citadina provocando inclusive a ação das autoridades civis. A sua influência nota-se também com a participação em algumas atas da câmara municipal.

Há outro estudo, relativo à cidade de Coimbra, do século XVII e XVIII – ainda que este último século não seja tão rico em fontes – que não encontra nenhuma mulher com o estatuto de mercadora. No entanto, isso não significa que estas não tenham existido. Segundo a investigação, foi encontrada uma grande mercadora, Sebastiana da Luz, a quem não lhe era atribuída essa designação. Essa mulher deixou, após a sua morte, a sua fortuna para a Santa Casa da Misericórdia de Coimbra, uma vez que não tinha nem marido nem filhos. No testamento por si elaborado, deixava à Misericórdia algumas condições para o uso do seu dinheiro, como uma doação para dotes. Esse documento assinalava ainda o inventário, o que permitia verificar o que a mulher tinha feito ao longo da sua vida. Por ter já antes recebido a sua herança da parte do pai, à qual a sua irmã contestou, a investigadora conseguiu também ter acesso ao testamento do pai. Deste modo, conseguiu-se verificar que a fortuna dela seria quatro vezes superior à do seu progenitor. Soube-se que fazia exploração de vinha, tinha uma mercearia e vendia artigos de retrosaria e de loja de ferragem. Assim, fica demonstrado que era uma mulher de negócios como o pai. Esta situação faz questionar se, por esta nunca ter recebido a designação de mercadora, não terá havido outras mulheres neste tipo de situação. De facto, a questão das mulheres empreendedoras é um assunto ainda por explorar, apesar de não existirem muitas fontes relativas a esse tema.

As tecedeiras eram uma profissão um pouco mais particular, uma vez que as mulheres recebiam aprendizagem para se tornarem profissionais qualificadas. Estas recebiam ensinamentos formais por parte de uma mestra, e posteriormente eram sujeitas a um exame final perante os juízes da corporação. Em 1808, por exemplo, 400 tecedeiras eram proprietárias da sua oficina no concelho de Coimbra. Nesse mesmo ano, a quinta maior contribuinte, num total de 1.805 ‘’oficiais de porta aberta e vendedores de mercado’’ era Maria Bárbara, uma tintureira que pagou 600 réis, quando a média era de 227 por profissional. Para além de Maria Bárbara, mais de quinhentas mulheres em Coimbra tiveram de pagar esse imposto aos franceses, de modo a financiar as campanhas de Napoleão na Europa.

Havia sítios que não funcionavam sem o trabalho feminino, sobretudo nas instituições de assistência a doentes, pobres, crianças e mulheres. Ser ama de expostos, por exemplo, foi uma atividade que foi crescendo, com uma função económica semelhante à das indústrias rurais.

No século XIX, começou a ser questionado o trabalho das mulheres, uma vez que os homens começaram a considerar que seria um problema estas desempenharem funções laborais, isto porque, com o trabalho, se tornavam masculinas. Assim, surgiu o mito de que as mulheres tinham saído da clausura doméstica para trabalharem, deixando de cuidar dos seus filhos e marido. A par desta nova problemática, surgiu no meio burguês o modelo da família ideal, onde a mulher era apresentada como um anjo do lar, um ser frágil e intelectualmente inferior, responsável pela harmonia do lar devido à sua bondade e doçura.  Deste modo, as mulheres só deveriam trabalhar em alturas de emergência, algo que era inclusive defendido pelos sindicatos. Para além disso, havia também a questão moral, pois o trabalho fazia com que as mulheres socializassem com os homens. No entanto, foi também em finais do século XIX que foram construídos liceus, que permitiram às mulheres ter uma melhor educação, ainda que o nível da instrução do sexo feminino continuasse nas décadas seguintes bastante baixo.

No século XX, com o surgimento dos regimes totalitários, o sexo feminino foi direcionado para um panorama de submissão perante o chefe de família, presente também em muitos slogans e outros meios de comunicação. Por isso, a mulher devia-se remeter ao lar para o bem da família. Este modelo seria replicado em alguns países, como a Itália, a Espanha e Portugal. Um dos exemplos desse modelo patriarcal é a adoção do sobrenome do marido, pressupondo-se assim que ambos formavam uma única célula. Para além disso, por serem regimes que procuravam fomentar a natalidade, para que se expandisse o contingente populacional da nação, usava-se a função reprodutora para condicionar a mulher ao lar.

Por último, importa referir que as mulheres começaram, com a Primeira Guerra Mundial, a aparecer em profissões especializadas, uma vez que os homens estavam na frente de batalha. Deste modo, é aqui que começa a surgir a prova da capacidade das mulheres em desempenharem trabalhos de exigência intelectual superior. Na Segunda Guerra Mundial, o mesmo viria acontecer e, com o fim dos totalitarismos, a mulher foi conquistando o seu espaço no mundo laboral.

Concluindo, é falsa a opinião geral que se vai ouvindo na esfera pública. Na verdade, e verificando as investigações históricas que foram sendo feitas relativamente a esse período, as mulheres sempre desempenharam trabalhos ao longo da História, ainda que não existisse igualdade social na escolha destes. O facto de o acesso à educação ter sido durante vários séculos bloqueado ao sexo feminino fez com que se vissem afastadas de cargos superiores. Isto não significa que não tenha havido mulheres a alcançar elevado estatuto, mas essas significavam uma minoria face ao restante sexo feminino. A abertura do ensino a ambos os sexos e a mudança de mentalidades que foi sendo feita nas últimas décadas é que tem permitido a inserção da Mulher em cargos que anteriormente se consideravam ser incapazes. Contudo, nos dias de hoje, continua a haver ainda alguns pensamentos um pouco retrógrados relativamente à igualdade de género, não só no alcance de lugares de topo, como também no salário auferido. Por isso, é uma temática que precisa de continuar a ser trabalhada a fim de alcançar a igualdade total de géneros relativamente a esta problemática.

Bibliografia usada neste artigo e que acho útil partilhar:

Lopes, Maria Antónia — “Sebastiana da Luz, mercadora coimbrã setecentista (elementos para a história de As mulheres e o trabalho)”, Revista de História da Sociedade e da Cultura 5, Coimbra, 2005, pp. 133-156.

Mota, Guilhermina — “O trabalho feminino e o comércio em Coimbra (séculos XVII-XVIII). Notas para um estudo” em A Mulher na sociedade portuguesa. Actas do Colóquio, vol. I, Coimbra, FLUC, 1986, pp. 351-367

Lopes, Maria Antónia — “Mulheres e trabalho em Coimbra (Portugal) no século XVIII e inícios do XIX” in Comércio y cultura en la Edad Moderna, coord. por Juan José Iglesias Rodríguez, Rafael M. Pérez García, Manuel F. Fernández Chaves, Sevilha, Editorial Universidad de Sevilla, 2015, pp. 1769-1787.

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