A música à distância de um toque

por José Malta,    17 Setembro, 2020
A música à distância de um toque
Fotografia de Adilson Casarotti / Unsplash
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Pela primeira vez desde o ano de 1986 os discos vinil venderam mais do que os CDs, pelo menos nos Estados Unidos de América. De acordo com o último relatório semestral da Recording Industry Association of America (RIAA), apesar dos discos vinil terem registado uma ligeira subida, a queda acentuada das vendas dos CDs acabou tornar este feito numa realidade. A actual pandemia terá levado a população norte-americana a consumir mais música durante o último semestre, e o resultado aponta para um novo marco nas vendas dos discos vinil. Pode-se dizer que esta é mais uma vitória do chamado Vinyl Revival, o nome dado ao ressurgimento do consumo e de um maior número de vendas dos discos vinil que ocorreu em meados dos anos 2000. No entanto, e ainda assim, as plataformas streaming são as grandes campeãs no que toca ao consumo de música. Continuam a dominar o mercado e é com elas que a música vai passeando nos nossos bolsos ou malas onde guardamos o nosso telemóvel, sempre acompanhado pelos nossos fones ou auscultadores. São também as plataformas de streaming que recorremos, por exemplo, quando estamos a trabalhar no computador ou enquanto estamos na cozinha a preparar o jantar. É quase inevitável não fazer uso destas plataformas que estão a um alcance fácil e que nos permitem ter acesso a todo um universo musical. No entanto, a velha máxima do “não há nada como o vinil”, que a certa altura era encarada como um clichê, acabou por se tornar numa evidência clara durante os últimos anos.

Cada um de nós fez parte de uma geração onde existia um meio principal de se consumir e ouvir música. Pessoalmente faço parte da geração do leitor de mp3, algo que não me enche propriamente de orgulho, mas que acaba por definir a minha posição a nível cronológico nesta temática. Ainda apanhei os últimos suspiros do discman, que alguns continuavam a chamar walkman porque o seu antecessor foi de facto revolucionário, uma moda que se estendeu durante vários anos até ter aparecido algo bem mais pequeno e prático. Cheguei a ouvir cassetes quando viajava de carro, embora tenha memórias vagas, e os discos vinil que os meus pais tinham em casa e que sempre os encarei como algo demasiado precioso para lhes tocar sequer, contribuíram para alguns dos alicerces dos meus gostos musicais. No entanto, sendo eu da geração do leitor de mp3, lembro-me perfeitamente que na altura este era visto como um meio revolucionário de se ouvir música e que seria a porta estandarte para a alta tecnologia do futuro. Havia quem achasse que os discos e as lojas de música iriam acabar um dia, e hoje sabemos que isso está mais longe de acontecer pois quem gosta realmente música continua a optar pelo célebre vinil, que tem um som puro e autêntico. Estávamos muito longe de saber o que eram as plataformas de streaming que hoje têm bibliotecas musicais a tenderem para o infinito. Hoje, pode-se dizer que acesso à música está à distância de um simples clique o que é de facto extraordinário, mas que acaba por ser algo que torna o consumo da música em si algo volátil e até passageiro.

Graças às aplicações de música e às plataformas de streaming a que praticamente todos acabamos por recorrer, temos um acesso a todo um universo musical, inclusive a canções que pensávamos que não existiam e que ninguém conhecia. Temos acesso a tudo isso incluindo a um conjunto de playlists que estas aplicações nos recomendam consoante os nossos gostos. Muitas das vezes, quando colocamos estas playlists a tocar passam músicas que, ou desprezamos, ou nem damos pela conta da sua existência, tornando-se algo repentino e efémero. O modo como a música é consumida nos dias de hoje faz com que as canções passem por nós um pouco como se fossem mais um autocarro ou comboio que apanhamos para ir para o trabalho ou para escola. Isto deriva também do nosso tempo útil não nos permitir ficar umas boas horas a ouvir uma sinfonia. O consumo da música nos dias de hoje passou a ser um pouco como a fast-food e com tanto género musical e material disponível muitas vezes acabamos por ouvir sempre o mesmo dentro do mesmo género, o que acaba por ser um consumo superficial. A geração do vinil que passeava os discos debaixo do braço e de mão em mão, de casa em casa consoante quem tinha o melhor gira discos, soube certamente o que era saborear a música, até porque havia uma maior interacção e até mesmos novas conexões entre pessoas que apreciavam os mesmos gostos musicais, havendo espaço também para conhecer outros intérpretes similares que à data poderiam estar fora do nosso conhecimento. Hoje, as gerações do walkman, do leitor de mp3 e até mesmo as gerações das plataformas de streaming são capazes de reconhecer isso mesmo, rendendo-se à evidência. Até porque, e tendo em conta aquilo que hoje temos à disposição, podemos afirmar que muito dificilmente existirá um “Walkman Revival” ou um “Mp3 Player Revival” como o Vinyl Revival que hoje existe e que tem um enorme sucesso.

Hoje a música está à distância de um simples toque, é fantástico e absolutamente fenomenal ter aplicações que nos abram as portas para milhões de álbuns, intérpretes e canções. Quem aprecia música à séria continua a optar pelo vinil, algo mais sublime, mas que se torna num pequeno luxo que não está ao acesso de todos. Apesar de ser um pouco inglório foram as vendas que determinaram sempre o sucesso musical de um intérprete, algo que hoje quase deixou de ser mensurável se comparámos com o estoiro musical da segunda metade do século XX. Dificilmente voltaremos a ter um álbum a vender tanto como Thriller de Michael Jackson ou bandas como os Beatles a venderem milhões de cópias dos seus discos. O número de vezes que as canções são reproduzidas nas plataformas de streaming valem o que vale e há música que é consumida ou vendida em quantidades mais reduzidas, mas que o é assim há vários anos, e assim continuará a sê-lo. O vinil vai continuar a vender e ainda bem que assim o é. É assim que a música consegue ter um significado próprio, sólido e que não seja volátil ou passageiro. O vinil, que muitos julgavam estar morto, voltou em força e promete ficar. Até porque, numa altura em que existe uma série de obstáculos a enfrentar, tem-se mostrado como uma forma de negócio rentável e acima de tudo sustentável. Este é apenas mais um sinal de que o vinil está aí para ficar, e esta é também mais uma das muitas vitórias que o vinil terá nos anos que aí virão.

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