A Noite de Armaghan e Saveli
Armaghan interrompeu o beijo e contemplou o olhar de Saveli.
O ar fresco daquela noite outonal nas estepes arrepiava-lhe o corpo, mas o olhar dele, de um azul quase gélido, confortava-a. Disse-lhe: “Os teus antepassados usaram armas e canhões e não conseguiram conquistar o meu povo. Tu, com palavras e estes olhos, conquistaste-me”. Saveli sorriu e voltou a beijá-la. A sua granítica personalidade russa não lhe permitia dúcteis manifestações de afecto.
O silêncio, no entanto, perturbou a jovem afegã. Fê-la emergir. Passou a sentir o frio, que de tão húmido parecia derretido das estrelas do firmamento russo. Passou a escutar o vento, que ondulava na folhagem do velho carvalho ali ao lado, a última árvore que se erguia diante o apetite estéril das planícies das estepes, que estendiam a sua manta árida durante dezenas de quilómetros para norte. E passou a questionar se a sua aculturação, após cinco anos na Rússia, tinha sido tão bem sucedida como imaginava. Será que ainda prevaleciam cicatrizes emocionais do confronto das suas nações? Mesmo nas novas gerações? “Terei dito demais? Oferecido demais? Tê-lo-ei assustado?”, pensou Armaghan.
O abraço quente de Saveli liquefez-lhes os pensamentos e as preocupações. Não pensou mais nisso e deixou-se levar, inebriada pelo sabor da mescla de vodka e saliva que as suas bocas partilhavam. Aquela noite era deles.
Estremeceu ao sentir o sol no rosto. E com ele, regressou o desassossego. Apalpou a folhagem ao seu lado e encontrou-a vazia. Nem um vislumbre de Saveli.
Cerrou as mãos e esmurrou o solo. Amaldiçoou-se pela entrega, pela falta de racionalismo, por ter seguido a emoção e a intuição em detrimento de uma estratégia mais calculista.
“Nunca mais”, repetiu. Uma, duas, cinco vezes, enquanto apanhava as roupas e outros despojos testemunhas da noite. E foi então que encontrou o caderninho, afundado no sangue dourado de Outono, que lhe devolveria o sorriso e o agasalho para o resto do dia. Dos dias.
* Я тебя люблю: “Amo-te”, em cirílico.
Este texto foi originalmente publicado no Crónicas da Madrugada