A noiva turista
Sentada em cima de um carro de bois que na realidade era puxado por duas vacas arouquesas, a noiva teve de se apear para dar um beijinho à menina da vizinha da frente. Por ali, há coisas que não podem faltar: o carro de bois que o noivo deve levar, da forma o mais ruidosa possível, até à casa da noiva; os arcos de flores por onde terão de passar várias vezes, ao longo do caminho, para lhes abençoar os gâmetas interiores e os seus futuros rebentos. E, claro, o abençoar das noivas que hão-de vir, Diz que dá sorte, menina. E, apeada, lá beijou a criança para a posteridade.
Estavam muito longe de casa e tudo isso era registado por um fotógrafo núbio que, anos antes, ali seria coisa nunca vista e provavelmente estranhada. O homem fotografava e conversava com os modelos fotográficos que tinham vindo de todo o lado. Havia uma multidão à porta do turismo rural onde se alojaram os noivos. Misturados com os convidados, que seriam na casa das dezenas, os mirones locais faziam o lugar parecer como as festas do antigamente. À pinha, todos se sentiam parte do acontecimento, tinham ouvido rumores, que pelas montanhas têm sempre eco reproduzido, por todos os povoados, que estavam a filmar um casamento para uma telenovela e ninguém queria perder o lugar de entrar na mesma. Dias antes, tinham começado a marcar lugar na minúscula igreja e no caminho empedrado que levaria os noivos, de lá de cima para lá abaixo, por um estreito socalco escavado na encosta e limpo, como há muito não era, pela Junta de Freguesia local. Nada planeado, nada coordenado com os noivos, a organização local não queria deixar lugar a mácula ou defeito alheio que os visitantes pudessem usar contra a terra. Era assim que se recebiam e se receberão sempre os estranhos daquelas serras.
A descida da encosta fez-se ao som do guinchar das rodas da carreta, ou carro de bois, se preferirem. O pequeno cortejo ia feliz, mais feliz do que a noiva, que mal ouvia os seus pensamentos e mal se equilibrava entre paus e solavancos. Por ali todos cantavam e dançavam, apesar do calçado mal adaptado às condições e o dia fresco de final de Verão os fazer juntar, o melhor que podiam, as golas e os casacos e vestidos demasiado justos e leves para o clima da montanha. Pouco a pouco, lá foram passando pelas varandas naturais, construídas para elogiar a noiva. Pequenos grupos familiares, pareciam e apareciam para gritar Viva a Noiva! Todos repetiam, apaludiam, e recebiam com pétalas caídas da teia imaginada, a alegria dos espectadores. Um a um, vários foram os grupos com a repetição deste ritual.
Ao entrar na aldeia onde se consumaria a cerimónia, que o outro consumar ficaria para mais tarde, uma cartela pendurada com a inscrição “O Envento do Século XXI” recebia a procissão de convidados e familiares. Um grupo de centenas esperava a chegada e com tudo florido, cheiroso e ainda agora saído do duche, lá gritavam o Viva a Noiva! Viva a Noiva!
A cerimónia foi rápida e para além do cruzar de dedos do noivo quando teve de repetir o que a Igreja Apostólica Romana quer que ele venha a fazer com os pobres filhos ainda por nascer, todos esperaram os nubentes recentemente transformados em marido e mulher à porta. Chuveu arroz e fez-se um brinde à noiva, com vinho a rodos, oferecido às dezenas de mirones. Ninguém casava há mais de trinta anos naquela modesta capela, e a recepção merecia uma troca justa entre os que tinham acabado de casar, e os que por lá vivem. Trocados brindes, o cortejo voltou à casa emprestada, no cimo do monte. O casal, desacompanhado por opção própria, falarou pela primeira vez como os casais costumam fazer e subiram a ladeira sem pestanejar ao que tinham deixado para trás. Comentários fundamentais às indumentárias, superstições e provérbios que tinham recebido sem pedir, lá subiram, convencidos do que lhes tinha acontecido, mais que bom, fazia sentido.
O casamento é simplesmente coisa simbólica para dois agnósticos que já tinham experimentado outros projectos amorosos; mas ali, no meio do nada, podiam finalmente beijar-se sem serem fotografados ou aplaudidos. Ao longe, o chiar da carreta que subia de volta, mais à frente, um pequeno grupo que os iria surpreender, com a sua afectuosa espera, pelo regresso da noiva e na casa do cimo do monte, os convidados, um rancho folclórico, a Emília e o Agostinho e a cadela Amélia já se preparavam para os obrigar a continuar as tradições que a terra dali lhes tinha feito ser dela, até que a morte os separe, ou ainda mais, quem sabe, sorriu a noiva para o noivo.