A nova normalidade
Futuro. A maior questão é sobre o futuro. Que futuro teremos, após tudo isto? Todos vivemos preenchidos com a ansiedade sobre o que virá a seguir. Há menos poluição, os mares estão a recuperar, o ar está mais limpo, fizemos todos uma pausa obrigatória para pensarmos nos nossos erros. Escreve-se e fala-se. Uns vêm aqui um momento de viragem, o ponto de partida para um mundo melhor. E todos vamos assistir ao que acontece, porque serão os mesmos de sempre a intervir no sentido de definir o futuro da forma como eles querem.
Veremos uma humanidade nova, com o fim dos conflitos armados, a resolução da carência alimentar e sanitária nos países subdesenvolvidos (e desenvolvidos também), a correção das injustiças, o respeito pelos direitos humanos. Será o fim do egoísmo. Não haverá mais abusos sobre os mais vulneráveis, não haverá corrupção, vai acabar a violência, porque “vai ficar tudo bem”. Alguém acredita nisto? Todos o queremos, mas só alguns fazem algo por isso, sem o nosso apoio, sem o nosso conhecimento, sem o nosso reconhecimento. Batemos palmas, depois de aparecer nas redes sociais para o fazermos. Elogiamos, enaltecemos, brindamos, e depois publicamos para toda a gente ver que o fizemos.
A ansiedade levará a desencanto. Na nossa esperança, procuramos ver algo de bom em tudo o que está a acontecer. Tememos o futuro e queremos que seja melhor. Mérito seja dado a todos aqueles que nos protegem diariamente, bombeiros, enfermeiros, farmacêuticos, médicos, agentes de segurança, e, veja-se lá, até políticos. Mas depois da situação de saúde pública se resolver, eles não estarão lá para nos ajudar. Ou melhor, estarão os políticos, para nosso bem ou mal. E nós? Vamos assistir? As classes políticas, como todas as outras, tem os seus elementos com uma distribuição gaussiana entre excelente, bom, médio, mau e medíocre. Por certo ninguém quer voltar à maior frequência dos elementos dessa classe estar pelo mau e medíocre.
Uma crise de cada vez, um dia de cada vez, cada um a fazer a sua parte. É presunçoso ser crítico em relação ao que poderá vir quando pouco se fez na situação atual. Ainda nada está resolvido e muito está por fazer. A segunda vaga está à porta.
Vamos continuar com a conversa do “vai ficar tudo bem”. Está cada vez pior, agora que a agenda económica tem que refazer-se e fá-lo-á, como sempre, através de uma agenda política. E os números, estavam a diminuir para, agora, voltarem a crescer.
Assim, procura-se o Grande Regresso à Normalidade, ou procura-se uma Nova Normalidade, ou qualquer outra coisa com um nome sonante. Ficaremos alerta para tudo o que poderá acontecer? Ficaremos atentos quando nos disserem que tudo está bem, que os sistemas de proteção global foram eficazes, que as políticas de décadas não falharam, que o número de vítimas era inevitável, que não vai voltar a acontecer e por isso não há lugar a medidas diferentes, especialmente as que custem dinheiro? Ficaremos atentos quando, outra vez, nos vierem dizer “compre”, “viaje cá dentro”, “viaje lá fora”, “invista”, “peça dinheiro emprestado”? E ficaremos atentos aos desempregados, aos espoliados, aos oportunistas ou aos protagonistas? Os representantes dos bancos e das empresas estão atentos, mas, verdadeiramente, a quê? A preocupação que é pública é igual à preocupação que é íntima, pessoal?
Nada contra a necessidade de retoma económica, mas far-se-á esta pela defesa dos interesses de alguns contra o interesse de muitos ou de uma forma global e verdadeiramente comunitária? Alguma vez se fez de forma altruísta? Vamos ter agendas escondidas, se não as temos já.
O sonho pode cegar-nos, ser romântico em relação a tudo o que aconteceu pode levar a uma ilusão com efeitos devastadores. O vírus não merece gratidão por querermos que o mundo mude. Esta doença é abominável, escabrosa, covarde.
Precisávamos de heróis e tivemos, assim como tivemos mártires. Que estejamos todos à altura de tão extraordinários indivíduos. Que não celebremos antes do tempo. Que não tenhamos um Grande Regresso à Normalidade. Precisamos de um mundo novo. O problema é que é a humanidade a definir o mundo e essa peca pela falta de discernimento.
Crónica de César Portela
O César é médico na área de psiquiatria.