A nova ordem mundial
Qual é a diferença entre invasão e transgressão? Entre abusador e abusado? Entre uma opinião e um comentário? Tudo perguntas que lá dentro de mim abafavam o volume da televisão naquele pequeno café. Todos olhavam para o ecrã há horas e estava quase arrependido de me ter sentado naquela mesa para escrever. Escrever o quê? Foi a pergunta que o Velhote, ao meu lado, me lançou ao ouvido. Como? Talvez não tenha descrito bem a minha dúvida, o que está a escrever? Um romance. E deitei olhos à tarefa como se a conversa fosse ficar por ali. Curioso. O quê? Perguntei-lhe eu agora. Estar a escrever com tudo o que está acontecer no mundo. Acha? Acho. Eu sinto que lhe falta relevância. Uma nova ordem mundial a acontecer à nossa frente e você a escrever um romance numa mesa de café. Apesar do choque por aquele homem, com ar acima dos setenta, me estar a interpelar sobre a minha motivação criativa na escrita de um romance numa mesa de um pequeno café, decidi resolver a questão. Pelo menos, distraía-me, e deixava de pensar na cena 36, com que me entretinha em insónias fantasiosas há já doze dias. Então diga-me lá, o senhor, o que eu deveria estar a escrever? Não devia escrever nesta altura. Sabe, há alturas para escrever e esta não é uma delas. Agora é uma boa altura para conversar. Sobretudo com estranhos. Porquê? Quer mesmo saber?
Aqui, entrou pelo café adentro uma pequena multidão de adolescentes sedentos de cerveja ou lá o que os fazia ali entrar por ali adentro. Tornou-se impossível ouvir duas frases seguidas e o homem, sábio das dinâmicas sociais dos pequenos cafés, calou-se e voltou a encarar a televisão. Tinha-me dado a impressão que queria conversar comigo! O quê? Fiquei com a impressão que queria falar comigo! E queria. Já não quer? Claro que quero, mas agora não é uma boa altura para conversar, está demasiado barulho.
Voltei à cena em que estava e, por mais que tentasse, as palavras não apareciam. Senti que toda aquela energia, a do grupo de adolescentes misturada com a da televisão aos altos berros, me tinha sugado a inspiração. Sem saber se devia sair ou ficar decidi-me pela televisão. Há dias que evitava olhar para um ecrã de televisão. O que estava a acontecer era demasiado cruel para ser visto daquela maneira. Sentia que nós, longe daquelas cenas de barbárie daquela guerra a milhares de quilómetros de distância, não estávamos mesmo a sentir empatia por aquelas pessoas, por aquele património destruído, por aquele país invadido. Apenas medo. Um medo infantil, como crianças em frente a um insecto que não compreeendem, ou o de um agricultor frente a um predador morto na sua horta. Medo. Apenas medo.
Passado algum tempo, o velhote voltou a olhar para mim e, aproveitando a saída do grupo de adolescentes, lançou a pergunta que me fez levantar e sair dali para fora; Não tem pena daquelas pobres almas? Não! Como assim? Tenho medo, isso sim. Medo? Medo que me aconteça a mim e não a eles. Isso sim, move-nos como humanidade. Queremos sempre ordem no mundo. Preferimos sempre a ordem ao caos e, mais tarde ou mais cedo, esse será o verdadeiro poder que nos controlará a todos.