À procura de culpados
Fomos presenteados com a queda de um primeiro-ministro em formato de telenovela. Ou romance, se quisermos ser mais eruditos. As personagens são apresentadas ao público: o dono da empresa não-sei-quantas, o ministro com a pasta de não-sei-quê, o presidente da câmara daquele-sítio. O grande chefe e líder envolvido no escândalo, líder deste esquema de pirâmide de acusações. Não interessa muito dizer os seus nomes e cargos concretos, o modelo da telenovela é sempre o mesmo: constrói-se cuidadosamente o perfil de cada um destes homens (são sempre homens, não são?), examinam-se os seus percursos, vidas pessoais, interesses, idade, onde é que ele andou na escola primária, o que é que jantou ontem, o que é que o levou a ser um criminoso?
Fica estabelecido, logo à partida, que estamos a falar de criminosos — ou pior, de más pessoas. O que implica perguntar: como é que se tornaram más pessoas? O que as levou a serem corruptas? Voltamos aos dados que já nos foram apresentados em loop no noticiário mais próximo. Será por causa do amigo da faculdade? Da influência do colega de gabinete? Será que aquela pessoa é má pessoa desde que nasceu? Alguém pode ir entrevistar a mãe do senhor para lhe perguntar se ele já roubava coisas no infantário? Ou pelo menos falar com pessoas do seu bairro para perguntar se ele tinha comportamentos suspeitos, tipo ir dar uma volta a pé às quatro da manhã ou carregar consigo uma pasta cheia de notas de cem euros? Ou, pior, ocupar um cargo ministerial?
Continuamos a dissecar cada uma destas personagens individualmente. Como qualquer boa telenovela, precisamos de um bom enredo, um bom início, meio e fim. O público precisa — aliás, exige — uma história linear, desde a construção deste homem corrupto, a sua vida de crime e, no final feliz, a prisão. Fica tudo bem explicadinho: o senhor era criminoso, um homem sem escrúpulos, já na faculdade era assim, até há quem diga que roubou dinheiro da associação de estudantes, depois também traiu a mulher, pelo meio ouvi dizer que não deixou uma senhora velhinha passar na passadeira e não deu uma gorjeta ao estafeta do Uber quando pediu o jantar. Era óbvio que ia roubar dinheiro ao estado, estamos a falar de uma má pessoa! Procedemos ao encarceramento coletivo, as algemas da PSP representam o público fervoroso em casa. Se houver um vídeo do acontecimento, ainda melhor. Apertadas as algemas, fica tudo resolvido: os maus estão detidos, acabou-se a corrupção. Afinal de contas, a corrupção, o crime, a anomalia moral, começava e acabava neles. Eram más pessoas.
Esta seria uma história divertida se não fosse mais ou menos verdade, com um ou outro detalhe por acrescentar. Quase toda a análise da corrupção, aquela que vemos nos grandes canais e jornais, continua a ser recambiada ao indivíduo: aos seus valores morais, à sua alma corrupta, ao seu espírito de bandido. Dissecamos a vida do dono da empresa e do ministro para percebermos as suas motivações individuais e o que os levou a serem criminosos — tudo isto durante o julgamento, antes do veredicto, claro. O problema com esta análise é que, como disse, se esgota no próprio indivíduo, no seu caráter e virtudes morais (ou falta delas). Mas não é curioso que esta história seja recorrente, em diferentes territórios e com diferentes indivíduos? Que nas democracias liberais ocidentais se multipliquem os casos de corrupção e crime, como se este desvio às regras originais do jogo não fosse apenas uma exceção, mas mais uma regra do jogo? Será que esta é mesmo uma questão de caráter pessoal, de virtudes morais da pessoa, e não uma condição inerente ao cargo que estes líderes ocupam? Será que a divisão estrita que fazemos entre o “setor privado” e o “setor público”, que tantas vezes é usada nestes famosos casos de corrupção, não é uma divisão fictícia que deve ser questionada?
Não há uma resposta certa a estas perguntas, pelo menos por agora. O problema é que elas nem sequer estão a ser colocadas na análise da queda do primeiro-ministro. Fazer estas perguntas permitiria chegar a outras perguntas e respostas muito mais interessantes que “ele é má pessoa, por isso é que fez isto” — sem sequer ter uma confirmação de quem fez ou não fez. Permitiria perceber se o cargo de primeiro-ministro, de ministro, de presidente de câmara ou de uma empresa são inerentemente cargos corruptíveis. Se o nosso atual sistema político, um sistema que partilhamos com a maioria do mundo ocidental, cria regras que vão ser quebradas à partida; se esta contradição — a luta acérrima contra o crime (em certos bairros, contra certas pessoas) e a proliferação do crime (por outras pessoas, curiosamente mais ricas e poderosas) — não é uma condição fundamental das chamadas democracias liberais. Se o facto de sermos um país pequeno com elites ainda mais pequenas não nos condena a viver constantemente neste ciclo.
Fazer estas perguntas levar-nos-ia a questionar os fundamentos do nosso sistema político e a imaginar novos sistemas a partir daí. Infelizmente, continuamos vidrados só na culpa individual, em perceber o que contaminou aquela pessoa. Levará algum tempo até compreendermos que estamos todos contaminados.