A psicologia e as percepções da “gestalt”

por Lucas Brandão,    1 Agosto, 2019
A psicologia e as percepções da “gestalt”
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Em alemão, gestalt significa forma. É precisamente o conceito de forma que, passe o pleonasmo, dá forma à psicologia experimental da Escola de Berlim, que remete para o Laboratório de Psicologia Experimental que lá foi fundado em 1893. Procurando perceber o que está subjacente à capacidade de apreender e assimilar perceções com significados diferentes, apresentam a mente como um elo com várias tendências. É um elo que se torna independente das partes, que é autónomo por si mesmo. As perceções resultam de interações mais ou menos complexas que enformam o processo cognitivo e as perceções figurativas, numa visão que, oposta à behaviorista – ou comportamentalista – se foca no exercício da mente e na interiorização, ao invés da exteriorização das atitudes e dos comportamentos.

As origens

Tudo começou através de Christian von Ehrenfels, filósofo austríaco integrado na conhecida Escola de Brentano, contando com os pupilos do referido Brentano, com o seu primeiro nome a ser Franz. Interessado nos conceitos da intencionalidade e da psicologia empírica, inspirou nomes importantes, como o psicanalista Sigmund Freud e o pensador da fenomenologia, Edmund Husserl. Por sua vez, também foi inspirado, à imagem de Ehrenfels, por David Hume, Immanuel Kant ou Goethe, nomes conceituados do pensamento filosófico e da literatura ocidentais. Outro vulto importante na formação do conceito da gestalt foi Max Wertheimer, um pensador austro-húngaro que viria a caraterizá-lo como algo primário e não como algo secundário ao funcionamento da mente humana.

Dois dos seus amigos conhecê-lo-iam na qualidade de pupilos de Carl Stumpf na Universidade de Berlim, este que era um professor conceituado de filosofia, psicologia e literatura moderna. Aqueles que viriam a acompanhar Wertheimer seriam, então, Kurt Koffka e Wolfgang Köhler, no decorrer dos anos 30 e 40 do século XX. Enquanto o primeiro era mais interessado pelas questões humanas das perceções mentais, o segundo interessava-se mais pelo estudo da consciência e dos comportamentos humanos e animais. Este grupo arrancou com os estudos sobre a gestalt na medida em que partilhavam a visão de que os objetos eram percecionados como integrados num ambiente de acordo com os elementos que se aglomeravam e formavam uma construção global.

“Toda a forma” seria a abordagem que sustentou a definição dos princípios da perceção humana, que determinava a forma como os objetos eram vistos pelos indivíduos. Num tempo e num espaço definidos como o presente, as imagens eram divididas entre a figura e o fundo, figura essa que só poderia ser visualizada a partir do fundo no qual se encontrava. Essa era a primeira grande premissa da chamada psicologia da gestalt, levantando uma outra questão: o que é que era observado primeiro, a figura ou o fundo? No caso de uma folha de papel, seriam as palavras ou a própria cor branca da folha? Estavam lançadas as bases para um estudo que se aprofundaria o percurso da gestalt, que não se fixaria no seu plano teórico e conceptual, mas que, à medida que a investigação se foi aprofundando, seria posto em prática.

A metodologia conceptual e as propriedades da gestalt

Os princípios que a escola da Gestalt foi compondo, para refinar a sua abordagem investigativa, foram somente dois, que contrastavam com o caráter desdobrado e fragmentado que o princípio do século XX empregava. Assim, a complexidade do objeto de estudo era observada através do princípio da totalidade e o do isomorfismo (igualdade de formas, em que a perceção e a sua representação são similares entre a ideia e a experiência) psicofísico. O primeiro passava por olhar para a experiência consciência como algo global, considerando os aspetos físicos e mentais dos indivíduos, por via das exigências da natureza da mente, que implicam as relações dinâmicas do sistema que define o objeto de estudo.

Por sua vez, o segundo aborda a correlação entre a experiência real e consciente e a atividade cerebral e mental, estabelecendo um padrão entre o estímulo externo e os processos mentais. A partir destes, as abordagens também são preparadas, voltadas para a análise do fenómeno experimental – toda a investigação psicológica assume o fenómeno como ponto de partida e não só as qualidades sensoriais – e a experimentação biótica – definiu-se uma necessidade de conduzir experimentações em situações naturais e com condições reais, capazes de reproduzir aquilo que é o quotidiano.

Esta perceção da perceção contou com o apoio direto da neurologia e da cibernética, assumindo-a como fundamental nos humanos e nos animais. Isto por se tratarem de dados que são recolhidos pelas noções da forma, percebidas pelo tamanho e pelo movimento. A estrutura da retina nos mamíferos é a mesma que nos anfíbios, o que ajuda a que, através de imagens mais ou menos distorcidas, se produzam sensações de movimento e que apelam à sensibilidade mental e sensorial. Casos como este exprimem muito daquilo que são as propriedades da gestalt como sistema de entendimento das perceções humanas.

A reificação é a primeira delas, tratando-se do aspeto construtivo ou generativo da perceção, sendo que esta contém mais informação espacial do que aquilo que o estímulo providencia. Por mais que uma forma seja percecionada, não significa que ela exista ou que ela se trate daquilo que é observado e apreendido. Isto também interfere no que é a dimensionalidade das formas colhidas, o que também contribui para o aspeto ilusório das perceções, por mais que os contornos existentes (ou a ausência destes) demarquem essas perspetivas.

De seguida, surge a multiestabilidade, caraterizando duas interpretações ambíguas perante o olhar que é colocado sobre uma forma. Pela existência de pontos de equilíbrio que formulam dois vetores visuais, surgem duas perspetivas que são alternadas e que dependem do olhar do indivíduo sobre o objeto em questão. Esta premissa foi muito utilizada na criação artística, criando as ilusões de ótica que, por mais que não se expliquem, são concretizadas na experiência humana. Outra das propriedades é a invariância, onde os objetos geométricos são reconhecidos independentemente da sua rotação, translação ou escala, assim como de outras perceções deformadoras ou de diferentes tonalidades estéticas. Por mais que a perspetiva consiga inverter ou refinar as formas, estas permanecem geometricamente coerentes, fiéis àquilo que são. A par com a emergência, apesar de não se tratarem de módulos separados, são propriedades que se integram num mecanismo unificado, que funciona como um sistema. Porém, o seu funcionamento só é capaz e efetiva-se com uma outra propriedade.

Os princípios e as leis da pregnância

A perceção gestaltiana assenta na propriedade (ou lei) da pregnância, que possibilita a organização e ordenação da experiência como algo regular, simétrico, ordeiro e simples. Para esta propriedade, redigiram-se leis que procuraram afiná-la e tentar prever o que é a interpretação de cada sensação produzida. A mente, percebendo os estímulos externos como um todo e não como a soma das partes, estrutura-os e organiza-os através dessas leis de agrupamento, que, embora canalizadas para o sentido da visão, foram reformuladas futuramente para os demais sentidos. Wertheimer, Kohler e Koffka desenharam, assim, as diretrizes do estudo da perceção visual, começando pela lei da proximidade.

De acordo com esta, quando um indivíduo perceciona um conjunto de objetos, este encara os que são próximos entre si como se da formação de um grupo se tratasse. Esta reunião de elementos é usada em elementos de marketing, procurando enfatizar os aspetos das eventualidades que se querem realçar. A lei seguinte é a da similaridade, que afirma que os elementos num dado conjunto são associados pelas suas semelhanças, podendo traduzir-se pela forma que têm, pela cor, pela tonalidade ou por outras tantas caraterísticas.

A geometria das formas é, em muito, visada por esta lei, que é seguida pela da proximidade. Aqui, em caso dos objetos estarem incompletos, no caso de cartas, de formas e/ou de imagens, são vistos como completos, apesar de, na realidade, não o estarem. É a perceção que acaba por preencher esse vazio e que completa a visualização da figura, procurando aumentar a regularidade dos estímulos que rodeiam as sensações. Em caso de ausência desta capacidade, as formas seriam vistas com pouca objetividade no sentido daquilo que querem traduzir, por mais que abrangessem, em si, as mensagens a transmitir. Uma outra lei é a da simetria, em que a mente encara os objetos como simétricos e formados em órbita de um ponto central.

A perceção encara a simetria como parte integrante do seu funcionamento e, no caso de não existir conexão interpretativa dos objetos visados, é a própria mente que se responsabiliza por os orientar no desenho de uma forma coerente. Semelhanças que existam entre objetos simétricos aumentam as possibilidades de serem agrupados pelas suas caraterísticas, o que leva a que as perceções sejam organizadas dessa forma.

A lei da fé comum, que se segue às demais, estipula que os objetos são olhados como linhas que se movem através do caminho mais fluído. Experiências que usam o sentido da visão vêm comprovando que o movimento dos elementos que constituem um dado objeto produzem esses caminhos, que permitem ver onde está o dito objeto. Os elementos assumem tendências de movimento, que permitem aferir para onde este se dirige e onde se encontra aos olhos da perceção.

A lei subsequente, a da continuidade, vem de encontro a esta na medida em que os objetos com a mesma tendência de movimento se congregam no mesmo caminho e que agrupam nessas construções de perceção. Numa interseção entre objetos, os indivíduos tendem a vê-los como duas entidades separadas, não só pelos estímulos serem distintos, mas também por estas mudanças de direção galopantes não contribuírem para que sejam vistos como um só.

As duas últimas leis são, em primeiro lugar, a da boa gestalt, ou seja, a que aponta que os elementos dos objetos tendem a ser reunidos pela perceção no sentido de formarem um padrão regular, simples e ordeiro. Enquanto os indivíduos olham para o mundo, procuram eliminar, ao mesmo tempo, aquilo que é complexo e o que não é familiar, percecionado a realidade da forma mais simplista possível. Tudo o que se torna excedente contribui para que a mente crie um significado, que oferece a regularidade global que é considerada em detrimento das relações espaciais existentes.

A consciência é o conceito-chave da gestalt e, por sê-lo definido nesta lei, é esta que é considerada como a própria lei da pregnância, que, do alemão, significa concisão. A outra é a da experiência passada, apresentando que, em algumas circunstâncias, os estímulos visuais são categorizados por via da experiência passada. Se dois objetos são observados com proximidade ou num reduzido intervalo de tempo entre si, podem ser perspetivados juntos, dependendo da forma como foram vistos e encarados.

As aplicações práticas

A gestalt foi adoptada como um meio para a prática da psicologia, criando-se uma terapia homónima ao conceito para o efeito. Procurando focar a análise na experiência presente do paciente, assim como nas responsabilidades pessoais que os seus contextos lhe implicavam, foi uma prática que só foi estabelecida já nos meados do século XX por intermédio de um casal, Fritz e Laura Perls. Estes eram dois psicoterapeutas que tinham conhecido o neurologista Kurt Goldstein, um neurologista que havia adaptado alguns dos conceitos da gestalt à realidade médica.

No entanto, as associações que lhes foram feitas começaram a ser cada vez menos vistas como verdadeiras, visto que o método de terapia se ia distanciando da abordagem teórica que os psicólogos da Escola de Brentano tinham cultivado. Tornaram-se, assim, independentes, embora se fossem desenvolvendo outros métodos psicológicos que se aproximaram da gestalt como conceito, nomeadamente na psicoterapia teórica da Gestalt, também assente na Alemanha, e desenvolvida por Hans-Jürgen Walter.

Não obstante as críticas, que apontaram, como lacunas, a falta de definição e de sustentação quantitativa, para além do caráter descritivo, vago e inadequado das suas leis, a Gestalt foi, assim, orientada para a psicologia. Isto foi possível por uma abordagem ampla dos problemas e através de um pensamento que podia ser produtivo – procurando a resposta a situações e às interações do ambiente através de uma pequena introspeção – ou reprodutivo – resolvendo problemas através do que já se sabe e do que se viveu.  Neste caso, quando alguém recebe vários testemunhos de informação, o indivíduo analisa, de forma deliberada, as relações existentes entre as partes, analisando os seus propósitos, os conceitos envolvidos e a própria totalidade de todo o objeto em estudo.

A compreensão surge, assim, de forma intencional, numa linha de pensamento conduzida por uma estruturação bem definida. A introspeção, ao olhar desta perspetiva da gestalt, nomeadamente apresentada por Wertheimer, é também relacionada com três outros processos, sendo eles o salto inconsciente durante o pensamento, a velocidade aumentada no processamento mental e a quantidade de pequenos circuitos que se sucedem no raciocínio normal.

Um outro percurso de relevo na psicologia gestaltiana é a teoria fuzzy-trace, que se subdivide entre a memória e o raciocínio. Proposta pelos professores norte-americanos Charles Brainerd e Valerie F. Reina, a teoria indica que os seres humanos codificam informação para dois caminhos separados, sendo eles o texto e a essência. A informação textual é a memória exata do detalhe, das partes de um padrão, enquanto a informação essencial assenta na semântica e nos conceitos, na perceção daquilo que o padrão é. É nesta última perspetiva que a gestalt vê a sua concretização prática; e que se prolifera também na programação, na música e até na modelação da cognição quântica.

A similaridade e a proximidade para a codificação e para a consolidação de um uso intuitivo da tecnologia, assim como o uso de associações cognitivas em dinâmicas operativas que agregam o todo ao invés da fragmentação das partes na mecânica quântica, são exemplos concretos; em que é a experiência que, por intermédio de um indivíduo consciente, pode ter o condão de influenciar um desfecho de uma experimentação ao mudar o estado de espírito de alguém ou o estado de algo. Porém, a gestalt ressoa bem mais na música, no processo de reconhecimento de uma sequência musical através da audiência de um pequeno grupo de notas, por mais diferentes que soem da versão mais conhecida por cada indivíduo.

A gestalt, na sua essência conceptual, mas também nas suas aplicações na psicologia, na ciência e na arte, é um dos percursos mais influentes do estudo da mente humana. Por intermédio de uma linha de estudo que se inspirou na teoria sistémica, vocacionou-se na perceção das perceções, isto é, na forma como as impressões são captadas, essencialmente através do olhar. Por entre as suas leis e pelos princípios de análise, fornece uma metodologia que se tornou notável na construção do conhecimento e na sua consolidação. Também a gestalt, no seu papel sensorial e formal, esclareceu as formas de comunicação entre a forma e o olhar, entre o estímulo e o automatismo, entre a experiência e a mente. Nesta revelação, desenhou-se, por entre todas as perceções, a perceção de uma maior perceção.

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