A razão e luz do ‘Sol de Março’, de Medeiros/Lucas
O mar e a emoção de Mar Aberto abriram caminho à terra e ao corpo de Terra do Corpo. Agora, a trilogia não-planeada de Medeiros/Lucas parte à descoberta da luz e da razão. De acordo com essa temática, a composição musical de Sol de Março é pensada de uma forma mais racional. Como Pedro Lucas revelou na conversa que teve connosco, é “quase uma materialização sonora da ideia de tentares usar a razão para controlar aquilo que são vontades emocionais ou intuitivas.” Como tal, este é o álbum mais acessível da banda; aquele que mais facilmente é ouvido de ponta a ponta. É leve e belo, sem descurar a poesia a que nos têm vindo a habituar ao longo dos últimos anos – aliás, essa vê-se aqui aprimorada, graças à nova sublime colaboração com o poeta João Pedro Porto.
“Podre Poder” foi um dos singles que antecedeu o álbum. A letra construída em aliterações da letra ‘p’ e guitarra hipnótica espelham bem a ponderação racional que está por detrás das canções, sem que soe estéril. Com um refrão como “Pouco mais se quer de um olhar/Que pôr bem claro um querer/Pouco mais se pode de um olhar/Que pôr clara a ânsia de ver” quase murmurado sobre bongós exóticos, é difícil a canção não ser cativante, mesmo não tendo a intensidade característica de boa parte do cânone da banda. Essa intensidade está mais espalhada neste álbum, apresentando a sua maior concentração no ponto mais lógico: o final, o clímax do “Fado do Salto”: música de libertação, com a tensão do contrabaixo de João Hasselberg a pontuar um futuro incerto, mas para o qual a banda se atira com garra.
O centro fulgurante do álbum é composto por um par de canções divertidas que expõe a luz musical que a banda se propõe a explorar. São essas o “breve momento lúdico” da “Elena Poena” e a assimetria coberta de xilofones de “Em Condicional”. A primeira é nada como outra coisa que a banda tivesse feito até hoje, uma música desmesuradamente divertida, com um estilo tropical dançável que quebra com o ritmo mais convencional do resto do álbum. É refrescante e funciona perfeitamente; o raio de luz no meio do ambiente sombrio de outras canções.
A voz de Carlos Medeiros apresenta neste álbum um maior dinamismo. Continua com o seu timbre grave típico do cancioneiro português, mas com mais jogos vocais que acompanham as melodias e tornam as canções mais interessantes. São exemplo disso “Os Pássaros” e “Galgar”. Nesta última, a voz acompanha o ritmo que galga, num vai-e-vem melódico estonteante e viciante. A sua colocação parece ser planeada para não cansar e intensificar o seu efeito, numa vizinhança de canções mais plácidas, que seguem impulsos mais jazzy nos quais o trompete de Antoine Gilleron brilha. A balada nocturna “As Calendas” é aquilo que sempre esperei que a banda fizesse com o seu belíssimo Fender Rhodes, pintanto um céu estrelado juntamente com a guitarra ténue, que já reconhecíamos de canções da Terra do Corpo partilhadas com outros mestres, Tó Trips e Filho da Mãe.
Sente-se a falta de alguma electrónica e de sons mais inusitados e abrasivos que compunham a música de Medeiros/Lucas, mas a banda usa esta nova faceta mais orgânica com orgulho, demonstrando a sua mestria criativa mesmo quando tomam as decisões mais racionais. Sol de Março continua a escultura do som de uma das mais características e inigualáveis bandas portuguesas, seguindo em direcções não desbravadas e aumentando a paleta sónica do projecto. Agora que chegámos ao final desta trilogia, quem sabe a direcção que poderão seguir?