A realpolitik é a morte das democracias atuais?
“Uma democracia que não se defende vigorosamente não tem o direito de sobreviver.”
Falta idealismo pragmático e objetivo em Portugal e é na política que tudo começa. É a partir dela que se rege a base da nossa sociedade e não há como contorná-lo. Sobretudo, numa altura em que para bem ou para o mal, o peso dos governos ganhou e continuará a ganhar relevância no pós Covid-19. A institucionalização dos partidos, mas também de quem deles faz parte quando chegam ao poder, coloca de lado grande parte do idealismo em nome de um suposto pragmatismo necessário e isolado, que tende a amolecer ou fazer desaparecer a base do propósito que existia na maioria dos casos. Tanto no exercício de pensar a política no sentido mais latus da palavra, como na sua prática. Aquela que deveria ser a mais nobre das profissões, acaba por viver do pior das vicissitudes de quase todas as outras áreas. Não o neguemos: colocar de lado um ideal também é muitas vezes o primeiro dos corrompimentos que experienciamos enquanto pessoas.
O retrocesso com a ascensão dos nacionalismos e extremismos exacerbados nos EUA de Trump, no Brasil de Bolsonaro, no processo e desenlace do Brexit, na Hungria de Orbán e tantos outros fenómenos aos quais as pessoas aderem, também se explica por aqui. A ausência de um ideal maior do qual muitos dos regimes democráticos e sistemas ficaram reféns. Os casos de corrupção, a pobreza e o desemprego jovem e adulto são alguns fatores que espelham essa demissão que esgotaram a vontade de muitos eleitores, mas são apenas uma parte. Estão longe de ser o todo. Apesar de tudo, as classes mais desfavorecidas viviam melhor em Portugal e no Ocidente genericamente do que há 10, 20, 40 ou 80 anos atrás. É por isso necessário ir mais além para entender a queda do ideal no regime democrático.
Acontece que os tempos nunca foram tão urgentes para que tanto o idealismo objetivo como o pragmatismo andassem de mãos dadas, de forma a salvarem as democracias nuns casos e a revigorarem-na noutros.
A política externa portuguesa, que como a de outros países, influi quase sempre e em cada caso concreto na política interna do país. Até isso devemos retirar dos resquícios desta pandemia que afeta praticamente todas as sociedades no mundo.
O mundo ocidental regride sociologicamente em muitos aspetos e polariza-se. Por um lado, a fúria e o preconceito, no discurso e na ação política, dão cabo de qualquer ideal digno desse nome. Por outro, confunde-se o combate político com justicialismo e destrói-se a individualidade e liberdade de cada um que tanto custou a conquistar para muitos. No entanto, tal como ontem, serão os países europeus que menos sucumbirem aos extremos que criarão melhores sociedades. A resposta à Covid-19 já o prova. E os que melhor souberem viver de acordo com aquilo que conquistaram na sua transição para a liberdade e que adveio de um passado mais do que recente na generalidade dos casos. Aprendamos com o que se possa ter perdido e esquecido nas últimas décadas e depois da revolução do 25 de abril, adaptando-o ao novo mundo. Foram raras as vezes em que Portugal retirou dividendos económicos, sociais e políticos a médio ou longo prazo quando colocou de lado o melhor da sua génese ou a sua raiz ética na relação com o mundo.
Alguma da academia de ciência política e relações internacionais no país julga e apregoa há anos a eficácia da necessidade de certa hipocrisia constante na relação entre Estados ou nas organizações multilaterais às quais pertencemos. Nada de mais errado como se constata facilmente numa análise mais aprofundada ao exemplo da independência de Timor-Leste ou a outro mais recente do que julgo ser um certo reforço do nosso papel no seio da atual União Europeia.
Portugal, enquanto país pequeno e periférico, tem alicerces únicos, mas pela frente desafios que não o permitirão ser em certa medida o que tem sido em democracia na geopolítica. O mundo é outro e a política será mais do que nunca um reflexo interno do que se apregoa e pratica externamente. A todos os níveis.
À parte da polarização a que assistimos hoje e na qual se perde grande parte do fio racional e evolutivo de um lado a outro, haverá um défice de legitimação para os governos democráticos que procurem relações consolidadas e uma projeção no mundo com outros que não defendam os seus valores. Cairão nas mesmas teias de ontem. Um posicionamento mais vincado na esfera internacional cuja estratégia esteja em linha com os nossos ideais acarreta sempre consequências no imediato, mas engrandece o país a médio e longo prazo. Economicamente, socialmente e politicamente. Sobram exemplos recentes que demonstram essas teias de maior comprometimento e que foram prejudiciais nas nossas relações internacionais, mal os regimes dos países mudaram ou o olhar global sobre eles se cimentou. Também aqui a mudança é uma constante e a perceção do amanhã na análise exterior das relações internacionais é tão ou mais relevante como a da atualidade.
A breve prazo, ou morre a realpolitik nos moldes em que Henry Kissinger a decretou na década de 70, ou cai a democracia. A informação secreta e privilegiada, seja ela obtida por meios mais ou menos legítimos é tornada pública com maior frequência. Todos os leaks dos wikileaks aos Luanda até aos Panamá Papers, são exemplo disso e influenciam as políticas internas e os próprios eleitores. É utópico achar que existe hoje mais segredos de Estado ou corrupção. Mais crimes financeiros ou negociatas fraudulentas entre países. Bem pelo contrário. Existe é todo um escrutínio e acesso através do qual se desvenda essa informação ao grande público. Os Assange’s, Rui Pinto’s ou Snowden’s não desaparecerão. Quanto muito, serão cada vez mais com o passar do tempo e com um poder reforçado. A tendência é essa e estarão tão ou mais protegidos do que alguns Estados e sem a necessidade de regerem as sociedades. Não precisam de se fazer eleger. A União Europeia, enquanto organização multilateral demorou, mas dá sinais de ter entendido isto. E Portugal?
É determinante pensarmos num modelo ou pelo menos, num modus operandi, distinto nesta nova ordem geopolítica. Sem realpolitik, mas sem idealismo vazio, também. Só com um objetivo maior que tem por base o nosso ideal e os valores que ainda procurarmos projetar. Só assim se salvará a democracia.
Crónica de Gonçalo Ribeiro Telles
Consultor de Comunicação e Analista Político