A regra dos 5 segundos da Netflix
Mito ou ciência, certo é que a regra dos 5 (ou dos 3) segundos é algo enraizado na nossa cultura… e na cozinha. Todos já tivemos este dilema gastro-temporal e de certeza que nos sentimos mais seguros com esta norma. É senso comum. A plataforma de streaming Netflix pegou nesta crença e decidiu aplicá-la no seu sistema. E embora a regra continue a ser higiénica, não resulta nada bem.
Começo por explicar que raramente fiz binge watching de pijama e persianas fechadas. E se fiz, não passava de dois ou três episódios seguidos. Sempre achei um desperdício dedicar um fim de semana a ver 4 temporadas à guloso, porque considero-me um velho do restelo no que toca a consumir entretenimento: gosto de ir saboreando a série com calma, por mais entusiasmado que esteja e mesmo que tenha acesso à temporada toda. Voltando à analogia gastronómica, é como ter uma tablete de chocolate em casa e comê-la toda de uma vez. Bem sabemos que nos vai saber bem, mas o arrependimento (e o enjoo) são consequências certas. No fundo, tento cumprir a dieta das séries como a televisão fazia: uma vez por semana, um episódio. A Netflix veio mudar as regras e, de facto, é de admitir que vivemos numa era fantástica, onde temos acesso aos conteúdos que queremos ver (ou que nem sabíamos que queríamos, mas passámos a querer). E há pouco tempo, entusiasmado com a nova série After Life do Ricky Gervais, não resisti e vi vários episódios de seguida, deparando-me com a tal regra dos 5 segundos entre cada episódio.
Para quem ainda não viu a série a que me refiro, é uma tragicomédia sobre a vida, a morte e o amor. Uma história simples, com diálogos muito fortes, bem construídos e personagens bem- apanhadas. Nada de espantar, vindo de quem vem. Mas sendo o tema pesado, é natural que no fim de cada episódio ficasse a processar o que tinha acabado de ver. Faz parte da experiência, é uma sensação ótima, esta de ficar desarmado e poder discutir com a nossa companheira sobre o significado da vida. E já agora, dar valor ao que temos. A meu ver, o grande poder das séries e filmes é precisamente este, de nos fazer parar e retirar algo para nós, uma mensagem.
Mas o que acabou por acontecer foi que não tive tempo para absorver a tristeza e amargura das personagens porque 5 segundos depois estava a começar um novo episódio. Toda a experiência anterior ficou tapada pela novidade, até chegar ao fim da série. E nessa altura, já se passou tanto, que perdemos os sentimentos e sensações que ao longo da temporada tanto faziam rir como chorar.
Esta é a consequência da era que vivemos: rapidez. Não há grande tempo para sentir seja o que for, quanto mais no entretenimento. O que se quer é consumir o maior número de séries e filmes para se poder dizer que se viu e não se sentir excluído porque, como todos sabemos, o FOMO (Fear of Missing Out) é cada vez mais uma realidade social entre nós. Também isto interessa à plataforma, para que o vício não pare, para acompanhar os tempos. No meio disto tudo, serei um romântico ou estarei a ficar para trás? Prefiro, para a minha higiene mental, acreditar que se deixar um intervalo maior do que 5 segundos, a série só ganha sabor.
Crónica de Miguel Peres
Miguel Peres é um rapaz baixinho e criativo com várias vidas: trabalha em comunicação, é copywriter freelancer e argumentista de banda desenhada. É um apaixonado pela sua mulher, por cinema, comida e BD. Tem 2 livros publicados, diversas curtas publicadas em antologias internacionais, um selo editorial chamado Bicho.