A revisão constitucional e a pena perpétua

O povo falou e traçou a composição do novo hemiciclo. Logo na noite eleitoral, fazendo as contas, surgiu a constatação que o PSD, Chega e IL poderiam promover uma revisão constitucional, dado que alcançaram mais que os 2/3 dos mandatos do hemiciclo. Uns constataram a oportunidade e outros contestaram a legitimidade, alertando para os seus perigos.
Sabemos que a Constituição da República é um documento fundamental que pretende espelhar normas, princípios e valores estruturantes da nossa comunidade e que pelo seu consenso suportam o próprio regime. Tal implica que a revisão constitucional não deva ser banalizada, por isso a própria constituição impõe limites materiais e temporais à sua revisão, tentando preservar a sua estabilidade, não a expondo à volatilidade de pequenas maiorias. Tivemos 7 revisões e a última foi há 20 anos.
“A própria constituição impõe limites materiais e temporais à sua revisão, tentando preservar a sua estabilidade, não a expondo à volatilidade de pequenas maiorias.”
Não obstante, é um argumento falacioso o de que iniciar um processo de revisão constitucional corresponde à abertura de uma caixa de pandora, que deixaria a Constituição de forma vulnerável nas mãos de um partido. Se a maioria necessária implica sempre três partidos, PSD-Chega-IL ou PSD-PS-IL, nenhum deles a poderia fazer sozinho. Apesar de reunidas numa única lei de revisão, as propostas são previamente votadas individualmente e aprovadas pela referida maioria, que podem nas diversas propostas conjugar diferentes partidos.
No meio de todo este discurso, surge novamente uma proposta controversa, vocalizada com esse propósito. André Ventura repetiu a necessidade de abrir caminho para a prisão perpétua, revendo a constituição no que concerne ao limite das penas, dado que esta refere expressamente que “não pode haver penas nem medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade com carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida.”.
“Seria um retrocesso na nossa ordem constitucional, abdicando de princípios relevantes que a suportam há muito. Esta disposição constitucional e os princípios que a rodeiam, não são socialistas ou liberais, são humanistas e fulcrais. Não é um legado de abril, é um progresso do século XIX, dado que foi abolida em 1884, uma corrente humanista que a Constituição de 1822 espoletou.”
Se achamos que o Chega apresenta soluções simplistas, que convocam várias emoções, para problemas complexos, não se caia também na tentação de rotular de forma simplista, cegando-nos por diversas emoções, um fenómeno que é em si complexo. A proposta não é por si fascista ou nacionalista, mesmo sendo oportunista há a oportunidade de a desconstruir de forma racional, sem nos ficarmos por chavões de superioridade moral.
Uma Pena Perpétua não é por si um ultraje ao Estado de Direito Democrático, grande parte dos Estados em todo mundo, de todos os campos políticos, preveem esse tipo de penas, aliás Portugal e as suas antigas colónias são das poucas exceções. Contudo, seria um retrocesso na nossa ordem constitucional, abdicando de princípios relevantes que a suportam há muito. Esta disposição constitucional e os princípios que a rodeiam, não são socialistas ou liberais, são humanistas e fulcrais. Não é um legado de abril, é um progresso do século XIX, dado que foi abolida em 1884, uma corrente humanista que a Constituição de 1822 espoletou.
“A prisão perpétua previne ou diminui, factualmente, a criminalidade? Não está provada uma correlação entre a existência da pena perpétua e a diminuição da criminalidade, tal como não existe essa correlação no caso da pena de morte.”
Um patriota tem orgulho nas suas tradições, um nacionalista diz-se que despreza a importação das dos outros. Teoricamente, todos reconheceriam que não devemos adotar práticas erradas de outras geografias. Com mais certezas poderemos afirmar que todos estarão de acordo que a criminalidade violenta é um problema para qualquer sociedade, mesmo que tenham diferentes perceções sobre as suas dimensões. A ordem e a segurança são, assim, conceitos apelativos e essenciais em qualquer Estado. Não há receio então de fazer a questão: A prisão perpétua previne ou diminui, factualmente, a criminalidade?
Não está provada uma correlação entre a existência da pena perpétua e a diminuição da criminalidade, tal como não existe essa correlação no caso da pena de morte. À exceção da Bielorrússia (Rússia tem uma moratória), não há pena de morte na Europa, e, no entanto, a criminalidade nos EUA é muito mais alta. Achar que um individuo no momento da prática de um crime, pensaria duas vezes se existisse pena perpétua e não só pena de 25 anos é desprezar a criminologia e deturpar os fins das penas.
Da mesma forma, deixará até a cabeça de Diogo Alves à volta, socorrer-se do argumento do cúmulo jurídico, indicando que um indivíduo depois de cometer dois homicídios, sentir-se-ia livre para cometer um terceiro e por aí adiante. Tal seria atribuir a um homicida em massa um juízo de razoabilidade que não creio ter e importar ficcionalmente uma realidade dos EUA, onde os serial killers são mais frequentes e as penas mais pesadas.
“À exceção da Bielorrússia (Rússia tem uma moratória), não há pena de morte na Europa, e, no entanto, a criminalidade nos EUA é muito mais alta. Achar que um individuo no momento da prática de um crime, pensaria duas vezes se existisse pena perpétua e não só pena de 25 anos é desprezar a criminologia e deturpar os fins das penas.”
A questão da reincidência poderia ser mais desafiante, dado que em último caso, se a pena perpétua não fosse sujeita a liberdade condicional ou revisão, a taxa de reincidência seria zero, fora do espaço prisional. Porém, que incentivo seria dado para que o comportamento do recluso se tornasse diferente e não criasse ainda mais entropias no sistema prisional, dado que abdicaríamos da lógica da reinserção social. Ser humanista, não é considerar que os reclusos são por si vítimas da sociedade e do sistema, mas que a sociedade não pode ser vítima de tentações meramente retributivas, mais primitivas, perante os que praticaram crimes, sob pena de caminharmos para uma lei de Talião, que acaba também por degradar a nossa própria dignidade enquanto comunidade.
Como no mundo jurídico sempre invocamos a doutrina, socorro-me de citações oportunas: “A pena deve ser proporcional, necessária e eficiente. O princípio da humanidade das penas é um corolário lógico do artigo 1.° da Constituição da República Portuguesa (CRP), devendo ser garantidas condições mínimas de humanidade, daí não existirem penas de prisão perpétua ou pena de morte, enquanto sanções irreversíveis contrárias à dignidade da pessoa humana e aos pressupostos de liberdade e capacidade de reintegração social em que assenta o quadro jurídico-penal português.”.
“Ser humanista, não é considerar que os reclusos são por si vítimas da sociedade e do sistema, mas que a sociedade não pode ser vítima de tentações meramente retributivas, mais primitivas, perante os que praticaram crimes, sob pena de caminharmos para uma lei de Talião, que acaba também por degradar a nossa própria dignidade enquanto comunidade.”
Este antigo Professor de Direito Penal, que com pena abandonou a docência, e alguns dirão a decência, acrescenta: “O princípio da humanidade das penas tem ainda uma outra dimensão relevante que se prende com o limite absoluto imposto pela noção de dignidade da pessoa humana, fundamento último da ordem constitucional portuguesa. Esta noção impede as penas criminais de serem instrumentos de degradação da condição humana, mesmo quando estejam em causa bens jurídicos de natureza superior (por exemplo, não poderia ser aplicada uma pena de prisão perpétua ou empregue qualquer forma de tortura mesmo se, no limite, tal facto pudesse salvar alguma vida humana ou recuperar um património extremamente valioso).”.
Poderia oferecer o meu único exemplar do livro de onde é retirada esta citação a André Ventura, mas já terá muitos em casa, dado que é o autor do mesmo e não precisará de “Lições de Direito Penal”. Claro está que poderá ter mudado, legitmamente, de posição, como o fez noutros pontos, pois “triste não é mudar de ideias, triste é não ter ideias para mudar”. Pode também afirmar, como outros, que há uma persona académica e outra política, apesar de não estarmos perante um juízo meramente técnico, mas profundamente valorativo, e sendo ele um político com longo percurso em que perfilhava essas posições humanistas.
“Podemos e devemos discutir o sistema penal e prisional, podemos e devemos debater a revisão constitucional, podemos e devemos debater o futuro de Portugal, mas não o façamos sem honestidade intelectual.”
André Ventura não acredita mesmo nessa proposta, e apresenta-a, como tantas outras, por mera estratégia política, sabendo que não irá ser aprovada, atuando, como tantos outros políticos de todos os campos, por motivações eleitorais e não por convicções morais. Os políticos que discordam da sua estratégia e das suas propostas, devem, então, desconstruí-las, sem chavões ou papões, sem desconsiderar quem cada partido representa e sem fugir ao debate. Mais do que vermos um problema nos políticos que dizem o que o povo pensa, será não termos políticos que pensem sobre o que povo lhes diz.
É certo que querer um país sem novelas e novelos partidários não se faz trazendo atores mais dramáticos, que mesmo com outro guião seguem os mesmos corolários pragmáticos, de quem se foca mais numa estratégia eleitoral do que numa estratégia para Portugal. Os partidos devem ter presente que não devem fugir a reformas de futuro, apenas para escapar a debates que pensávamos estar no passado. 50 anos depois da sua aprovação, precisamos de uma constituição de 2026 e não de outros tempos, que acautele nomeadamente preocupações levantadas pelo Tribunal Constitucional.
Dentro das regras democráticas apure-se, sem dramas, a vontade política para cada proposta. O regime está seco, e não nos serve de muito atirarmos fogo de artifício para o ar à espera que chova, quando devemos regar os valores por quais nos regemos. Podemos e devemos discutir o sistema penal e prisional, podemos e devemos debater a revisão constitucional, podemos e devemos debater o futuro de Portugal, mas não o façamos sem honestidade intelectual.