A Sibéria de Kurosawa, um sonho que me conforta
“E então os sonhos subiam na noite para irem acender-se na miragem da luz móvel. Não é realmente vivo, o que se passa na tela, lá dentro é mantido um espaço dúbio para os pobres, para os sonhos e para os mortos. Devemos encher-nos rapidamente de sonhos para atravessar a vida que nos espera lá fora, à saída do cinema, para durar mais alguns dias em plena atrocidade das coisas e dos homens. Entre os sonhos escolhemos os que nos reconfortam a alma.”
Louis Ferdinand Céline, em “Viagem ao Fim da Noite”
2016, Agosto. Lisboa, ou o inferno. Parte da minoria que não migrou para banhos, sou uma imensa massa de suor e dificuldades respiratórias. A cidade seria perfeita neste mês, não fosse este determinante detalhe térmico: as pessoas não se acotovelam no metro, os carros não buzinam, mas o calor é insuportável. É sábado e recordo o conselho do André: o melhor lugar para fugir ao calor, nestes dias, é o cinema. Arrasto-me então da Rua da Arrábida até à 5 de Outubro, de garrafa de água em punho.
Da sessão dessa tarde, no Nimas, sei pouco. O cartaz é bonito e o título pouco revelador: Dersu Uzala. Mas algo revelador: um filme de Akira Kurosawa. Compro bilhete e nova garrafa de água. Entro. Está meia-sala: perfeito.
A primeira sequência de imagens conquista-me de imediato. Após um plano da montanha, aparece-nos Arseniev que procura o local onde foi enterrado o seu amigo, Dersu Uzala – o filme será isto, essencialmente. Recuamos no tempo e assistimos ao desenvolver desta terna amizade. Arseniev, o capitão de uma divisão militar, conhece Dersu, um nómada Nainai que faz da montanha a sua casa, que conhece tão bem como a si próprio, já que é uno com ela. Dersu Uzala é o arquétipo de uma vida em harmonia com a natureza de um mundo pré-civilizado. Arseniev é um militar e, portanto, ícone máximo da civilização que se lhe opõe. A sua amizade é a síntese destes dois mundos desavindos, mas um deles morre e o outro chora a sua morte.
A amizade, no entanto, é eterna. E floresce nesta fria montanha da Sibéria. No cinema, deslumbro-me com os belíssimos planos de árvores, neve, água – muita água – sob um sol gelado e belo. Removidos da escaldante e urbana cidade, o meu corpo e as minhas sinapses são um só, imersos naquela explosão de beleza glaciar impulsionada por essa maravilha da civilização que é o ar-condicionado. Experimento então um singular momento de verdadeira felicidade que culmina na belíssima imagem-poema que é a construção do abrigo de folhas que salva Dersu e Arseniev de uma tempestade de neve, sobre um lago gelado, conservando o seu calor vital nos corpos um do outro.
Recordo-me então de outro Verão, quase dez anos antes deste. O inferno será provavelmente um exame de macroeconomia, ou algo que o valha, e muito calor também. A Sibéria está algures entre as estações de Cortegaça e Carvalheira-Maceda, dentro de um comboio urbano, nas páginas finais de Crime e Castigo que seguro entre mãos transpiradas. Rodion Raskólnikov, cumprindo a sua pena por homicídio, após centenas de páginas de agrura existencial, encontra em Sónia, que o acompanha, o amor, autêntico e belo: a possibilidade de redenção após a queda, no mais inóspito e frio dos lugares, pela ligação a outro ser humano. Exulto. Dou pulos internos de contentamento. Entendo que nada importará demasiado enquanto tiver a bela imagem de Rodion e Sonia de mãos dadas sob o frio da Sibéria presente na minha memória.
1973, Akira Kurosawa é contratado por um estúdio soviético para filmar Dersu Uzala, livro que havia lido nos seus dias de adolescente e que o tinha impressionado – como boa parte do que lemos em adolescentes. Dois anos antes, uma tentativa de suicídio, resultado de uma longa depressão após um fracasso criativo e financeiro. Falha, felizmente. Recolhe-se a uma vida doméstica e quase desiste do Cinema. Terá, eventualmente, esfriado as suas febres interiores no belo frio da Sibéria, enquanto compunha este poema à amizade que não termina antes de nos dar o maior presente de todos.
O capitão Arseniev encontra por fim a sepultura de Dersu. Olhamo-lo a olhá-la fixamente num plano duramente, desconfortavelmente, longo. Longo o suficiente para que percebamos que não é só Cinema – porque é Cinema – e que estamos, de facto, perante um homem a demorar longamente o olhar na sepultura do seu amigo, e a vê-lo. E este, sim, é o momento em que estou realmente na Sibéria e sou Arseniev, sou Raskolnikov, sou Kurosawa e sou eu. Em que exulto. Em que compreendo que viver verdadeiramente significa, como consequência última, coleccionar estas sepulturas que nos demoram o olhar por tão longos e duros períodos de tempo, e a ternura que existe nisto.
Saio do cinema e o sol já vai baixo. O ar é respirável. Aprendo, assim, esta inusitada lição sobre o valor que existe numa visita à Sibéria. O frio é o sonho que me conforta. Eu sofro muito com o calor, já devem ter percebido.