A síndrome de Dorian Gray da sociedade actual
Muitos daqueles que fazem parte da sociedade atual vivem na sombra de uma síndrome que foi criada ainda no século XIX, mas que acompanhou muitos daqueles que apreciam a literatura escrita nesses tempos. Dorian Gray, criada pelo autor irlandês Oscar Wilde, é uma personagem mítica, que se destaca pela postura física deslumbrante, pelos gestos delicados, pelo fino recorte que acaba por definir todas as suas falas, todos os seus pensamentos, todos os seus momentos. É uma referência olhada pelos demais, especialmente pelos aristocratas, que tanto apreciam esses contornos.
É dessas aparências, dessas fachadas, que nasce muito daquilo que é a perceção estética que predomina nos nossos dias. A beleza é aquilo que aproxima da perfeição, por mais que a imperfeição se esconda e se exprima das formas mais brutais. Não que se chegue ao ponto de lesar com violência o próximo, mas um olhar de soslaio e de superioridade é algo que se consolida numa perspetiva da distância estabelecida com aquele referencial. Um referencial que fere a noção de realidade e de humanidade, mas que todos aprenderam a respeitar e a estimar.
São referências que prevalecem nos dias de hoje. O valor estético, que é captado pelo momento fotográfico, é um valor de destaque nas perceções e nas opiniões que são criadas, numa valorização exagerada do valor das aparências. É uma síndrome que permanece e que remanesce desde há algum tempo, em que os princípios da arte foram estabelecidos. O conceito de beleza e o de perfeição foram estratificados para se verificarem de uma determinada maneira, maneira essa que redunda numa visão pouco preenchida de significados sobre o mundo e sobre os seus habitantes. De igual forma, expressa-se o desejo de permanecer os valores estéticos intactos, para que as boas graças do mundo e daquele que discursa ao espelho continuem elevadas e repletas de aspetos positivos.
O elixir da eterna juventude continua sem se revelar, por mais que a cirurgia plástica se venha desenvolvendo de forma consistente e considerável. Casas dos setenta misturam-se com a dos cinquenta e até com a dos quarenta. Distorcem-se perceções, conceitos baseados em impressões, que se sustentam em valores estéticos. A arte contribuiu para isto, e também Dorian Gray procura essa representação. É o quadro de Dorian Gray que representa a síndrome que desmascarou e que continua a desmascarar aquilo que, em muito, compõe os olhares que motivam as ligações humanas, cada vez mais artificiais. Um bom nome e um bom rosto ajudam a que o interior seja entendido como algo sensível e perecível, à imagem de uma boa peça de arte.
Dorian Gray vê-se, conforme indicam os cânones retratistas, representado numa tela na perfeição, com exatidão, com precisão. Os valores que transporta em si, em torno do seu vulto, pairam numa obra que não quer mostrar a quem quer que seja, com receio de que a sua beleza seja deteriorada. Uma beleza que se vira contra o feiticeiro e que endoidece o seu representado, subvertendo a normalidade de uma forma que nos é muito íntima e real, por mais que inconsciente. Dorian Gray ultrapassa a mera condição de humano, ascendendo a uma posição de ideal, que, confrontado com a sua realidade verdadeira (um pleonasmo intencional), é visto com os olhos conscientes de que há mais do que essa juventude artificial e mascarada.
É nestes pilares que a sociedade de hoje, ainda em muito reforçada com os comentários positivos que se sucedem sobre a sua boa aparência, agora catapultados com a emergência das redes sociais, se vai estendendo e se apresentando às gerações anteriores e posteriores. Um exercício de adivinhação é complicado para perceber o que será do futuro, o que será daquilo que o mundo tem para apresentar (e representar). São pilares que estão arreigados e que não cedem perante as aventuras das vanguardas artísticas, ou com aqueles que se querem dar a apresentar como belos em sentidos opostos. A estética é a imagem que passa e trespassa pelos tempos, que Dorian Gray tão bem soube solidificar.
A cristalização da humanidade vai-se escrevendo desta forma, muito à imagem de Dorian Gray. São discursos que, em muitas ocasiões, acabam nas frustrações várias e nos incidentes que flagelam a verdadeira sensibilidade humana, composta pelo que sente e por quem sente. A incontornável via da fragilidade estética e física da humanidade gera problemas de maior ou menor escala, mas que não anulam o seu poder destrutivo. Enquanto a sociedade for expressão somente visual e descartar o alcance dos demais sentidos, Dorian Gray será um exemplo concreto do que a estética ainda consegue influir no sentido humano. Por mais que se ame e que se vá para lá do que o olhar encara, o ser humano ainda se pode destruir pela vicissitude do parecer, do aparentar, do mostrar. É desta forma que a síndrome se alastra e continua a alastrar-se, por entre as múltiplas vidas da apreciação (e da depreciação) da visão.