A técnica de decorar texto
Mas e decorar um texto, como é que isso se faz? Foi das primeiras perguntas que fiz, aos mais velhos do que eu, quando comecei no teatro. Eram tempos pouco tecnológicos, esses, e as sugestões eram todas analogicamente inocentes. Primeira teoria: Ler o texto em voz alta muitas vezes e de preferência ao espelho, para começar logo a testar expressões e entoações. Experimentei uma vez e como me comecei logo a rir e a lembrar que mais do que eu controlar como me vejo ao espelho, é dos outros esse poder, o de me ver e de me sentir. Senti-me perdido e a precisar de conselho, Isso que você está a sentir deve ser muito interessante, mas aqui de fora não se vê nada, por isso o que você está a sentir é inútil. Foi das primeiras lições e daquelas que, por mais que tente, nunca consigo ultrapassar totalmente. Segunda teoria: Escrever o texto que se quer decorar, várias vezes, porque a parte do cérebro que usamos para escrever está mais fortemente ligada às memórias do que a que usa a fala. Parecia lógico e experimentei, mas depois com as canetas fluorescentes com que podemos sublinhar o texto, abandonei por não ser prático ter cadernos em demasia. Terceira teoria: (verdadeira mesmo) Ter uma assistente que nos ditasse o texto enquanto adormecemos. Diz-se que esse é o momento maior da nossa concentração diária, e já que o usamos para pensar em parvoíces mundanas como listas de supermercado ou discussões imaginárias com figuras de poder, porque não o fazer? Como nunca tive uma assistente perto da minha cama, acabei por deixar esta teoria para um período onde tivesse menos a perder.
Não gostamos nada de admitir, mas decorar um texto é algo moroso, maçudo e que dá tanto trabalho como preparar um teste na escola ou um exame na universidade. Mas como é que vocês conseguem decorar aquele texto todo? Também se poderia repetir essa pergunta a um cirurgião cardiovascular durante uma intervenção de tórax aberto, Mas como é que vocês sabem onde cortar? Decorar o texto é, assim, uma figura amada por uns, e odiada por outros. Até há teorias controversas sobre como esse processo desagradável de colocar palavras alheias na nossa memória levou a várias revoluções nas artes performativas.
Há até aquela história sobre um famoso dramaturgo que, com grandes dificuldades para decorar o texto de uma personagem protagonista, escrita pela sua própria mão, se dedicava a improvisar sempre os monólogos. Quando os mais jovens lhe perguntavam porque o fazia, respondia sempre: o trabalho do dramaturgo é sempre melhorar, acrescentar, experimentar novas palavras para este texto e para os próximos. Os mais velhos riam-se e deixavam-no contar as suas manhas aos incautos, como verdades absolutas. A verdade é que o homem não conseguia decorar textos, mas ainda assim adorava tanto os aplausos que recebia no final de cada espectáculo, que acabava sempre por voltar a esse ridículo incoerente.
Felizmente, a tirania do texto acabou. Isso já não é uma obrigação terminal, a de um espectáculo onde se emanem palavras, que as mesmas tenham de ser decoradas de um texto pré-escrito. Mas também é óbvio que o seguimento de um texto, de um guião, une facilmente as partes intervenientes de um espectáculo até de forma mais autónoma do que num espectáculo onde o texto vá sendo construído. Não é assim antagónico que o texto ainda sustente liberdade e criação colectiva, tal como o guião no cinema permite planeamento e preparação para uma produção mais complexa (logo, potencialmente mais interessante ou arriscada)?
Sendo assim o processo mantém-se em aberto como a procura do santo graal ou do sentido da vida. Cada um e cada uma encontra um processo de conseguir decorar o texto, o melhor que pode e no mais curto espaço de tempo possível. Também acrescentar que há textos muito mais fáceis de decorar do que outros: textos com rimas ou textos que se aproximem mais da nossa própria maneira de falar. Por isso é directamente proporcional a dificuldade de decorar com a distância de uma câmara, telenovela, série, filme, palco. Porque no palco há mais poesia, dizem, os actores que gostam dos meus textos. Porque complicas tanto os teus textos, pá? Dizem os outros.
Assim, a única verdadeira e boa teoria é a da repetição e a da ajuda de alguém que nos ature em repetir, demasiadas vezes, eu sei, não me enganei, é mesmo uma pausa dramática…